Lembro-me muito bem quando ainda criança, na
segunda metade dos anos 1990, caminhava com meus primos até a locadora de vídeos
do meu bairro e com a naturalidade típica de toda criança, perguntava a atendente: “Moça,
Traços/Faces da Morte tá “locada”?!”
Eu não devia puder alugar aquelas fitas. Mas
dinheiro é dinheiro, e a dona da locadora parecia mais preocupada em alugar as
suas fitas, do que em refletir sobre os efeitos nocivos causados pela permissão
dada a crianças em relação à VHSs que não deveriam ser vistas.
Mas era moda. E foi durante algum tempo. Estamos
na maturidade do chamado shockumentary, um
gênero que consistia na produção de uma série de documentários que procuravam
retratar com a maior fidelidade e frieza possível a realidade da brutalidade humana,
sem retoques.
Com essa premissa, durante os anos 1980, alguns
cineastas percorreram o mundo no intuito de recolher filmagens que exibissem imagens
reais de diversas situações de morte humana ou animal. Assim, imagens de mortos
em regiões de guerra, acidentes aéreos ou naturais, execuções, assassinatos, e
etc, eram recolhidos e compilados para fazerem parte de uma série de
documentários que marcaram a infância daquelas crianças que contaram com, além
de sua curiosidade mórbida, a negligência das atendentes das locadoras de seus
respectivos bairros: faces/traços da
morte.
Tais documentários, que começaram a ser
produzidos em 1979, possuíam o modelo idêntico: a exibição em série de mortes
de todo tipo, das mutilações aos efeitos das guerras, sempre contando é claro
com uma narração mais do que “macabra” e com uma trilha sonora de death metal.
Obviamente que sua exibição acabou por ser
proibida em muitos países. A capa do VHSs das mesmas ao anunciar “Proibido por
mais de 40 países”, acabava por aguçar mais ainda a curiosidade das crianças
que, na imaturidade da idade, não sabiam distinguir entre o sádico e o
fantasioso dos filmes de terror.
E foi assim que uma série desses filmes Traços/Faces da Morte perpassaram todos
os anos 1980 e 1990, apresentando cenas reais e macabras de todo tipo: imagens
daquele acidente aéreo, daquela execução no Líbano, daquela pessoa que se jogou
de um prédio em chamas... daquela
guerra...De tudo!
Mais de dez sequencias foram produzidas dessa
franquia Traços/Faces da Morte, sem contarmos
é claro, uma série de outros documentos que no bojo desse “sucesso”, surgiram
durante essas décadas.
O sentido em assistir a algo do gênero? Não sei
responder. Não posso negar que durante a minha infância tais documentários eram
encontrados na mesma “sacola de fitas locadas” na qual perfilava Jaspion e Rei
Leão, quase quê sem distinção. E a gurizada se reunia para assistir.
Talvez certa sádica sensação de conforto
provocada pela distância em relação ao que se estava assistindo – ainda que a
morte seja tão próxima a todos – explique isso. Ou nada explique. O Sadismo, quem sabe. Ou o
modismo, e a vontade das crianças que, acostumadas a assistirem a uma série de
filmes de terror, se sentiam curiosas para observarem “algo mais além” da
ficção dos filmes.
Até hoje é possível encontrar tais documentários
disponíveis pela internet, na forma de download. Nunca mais tive coragem de clicar num dos
links que os disponibilizam. A idade não mais permite. O senso de realidade
chegou, e a “falta de noção” da infância se foi.
No fundo, às vezes penso que, permanece o medo
de que, diante do estado das coisas atuais, na qual a violência e sua exibição
fria em todos os meios se torna uma constante, ao reassisti-los, da minha parte
não transpareça nenhuma reação. O Shockumentary da estante da locadora do
meu bairro, agora é o jornal da TV diária. A violência fria e crua, eis o
gênero de maior sucesso da humanidade.
Att. Rafael Prata
Mestrando em História pela Universidade Federal
de Sergipe
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