quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Cinema para entender o Racismo. (Part.1)


1. Introdução: Porque o Cinema?

 

         Discutir a problemática concernente aos variados modos de difusão da Intolerância em nossos tempos, nos leva diretamente ao resgate de um Passado, que de outrora nos parece tão distante, emerge com uma força histórica significativa a ponto de suscitar reflexões sobre a mesma, ainda nos mais variados segmentos da sociedade, seja no campo sócio-cultural ou em outros campos representativos da sociedade.

        Não obstante, em um primeiro olhar, nos parece estranho desviar nossa reflexão, sobretudo aos primórdios da Arte Cinematográfica e entrever ali os resquícios de um estudo, de uma possível reflexão ou simplesmente do espelho refletor das variadas formas de Intolerância que emergiram no caminhar da humanidade durante os séculos.

        Remontar aos primórdios do Cinema é uma atitude ousada, cujos fins e compromissos podem não ser atingidos, mas a premissa com que partimos aqui, é justamente de tentar enxergar uma “contra-analise” da sociedade a partir de certas obras clássicas daquele momento que podem e refletem o sentido e pensamento de uma civilização ou nação de outrora, fazendo da teoria uma pratica da viabilidade do campo do Cinema, como propunha Marc Ferro.

        Esta ousadia é puro reflexo de uma atitude inovadora em respeito à importância da Imagética em geral, iniciada principalmente a partir da década de 60, quando o movimento Annalles revolucionou o campo metodológico da História, dando em profusão um sentido viável de fontes que ultrapassa o mero limite das paginas escritas.

        É certo que a aceitação dessa viabilidade, no que toca ao campo do Cinema, ainda encontra inúmeras barreiras dentro do seio acadêmico, muito ainda pela incapacidade ou falta de apreço dos mesmos em procurar enxergar uma aceitação, um meio de entender os filmes ou tudo que possa ser Imagem como algo com valor histórico, que possa reconstruir de certa forma, ou ao mínimo imaginar um sentido para o Passado ou, sobretudo a maneira como as pessoas pensavam o mundo a sua volta.

        Assim, o Cinema, como mais um espelho das mentalidades, pode nos ajudar a compreender os estereótipos, os preconceitos arraigados em determinado momento histórico, e é a partir desta menção, que inicio a analise seguindo, tomando como referencial,  cineastas e obras importantíssimas – e reconhecidas dentro da História do Cinema –  que nos ajudam a compreender o racismo, o preconceito, que era expelido com certa naturalidade em dado plano histórico.

2. O Caso Clássico: Darren Griffith e a sua obra “O Nascimento de uma Nação”.

           Quando em 1915, o jovem cineasta Darren Wark Griffith lançou sua obra “O Nascimento de uma Nação”, talvez não imaginasse o estardalhaço que aquela película iria causar não somente nos Estados Unidos, como também em todo o Mundo onde fora rodado seu filme. Todo esse estardalhaço, muito além do que podemos inferir, nos ajuda a entender a ideologia e os pensamentos de uma época, como também a evitar pensamentos maniqueístas quanto a “monstruosidade” de uma pessoa, como sendo parte única de um pensamento, que como veremos, fazia parte de um todo.  


O Nascimento de uma Nação: A História dos Estados Unidos pelo viés racista.

       Não se trata aqui de uma defesa, mas sim de posicionar as atitudes e os pensamentos do cineasta frente às estruturas históricas de seu tempo – o que obviamente não exime sua culpa – para observar então como o Racismo obteve uma presença fortíssima na construção de sua imagem.
        Griffith se torna cada vez mais controverso quando levamos sua obra mais conhecida, de cunho altamente racista em comparação com obras seguintes, nos levando a refletir sobre sua personalidade e a partir daí entender então a sociedade americana a época – sem generalizações é claro. Afinal, após lançar esta sua obra acachapante, Griffith, um ano depois, lançava no Mercado mundial, uma película intitulada “Intolerância”. 




   Griffith: Grande cineasta, o pai da montagem; contudo, um racista.


            Sendo assim, esta situação nos parece uma contradição e um absurdo evidente e difícil de entender e contextualizar historicamente. Contudo, para entendê-la é necessário que façamos um exame sobre o estatuto da obra, de seu autor, e, sobretudo de todo o contexto histórico americano vivido a princípios do século XX, quando do recente fim da chamada Guerra da Secessão Americana. 
          Griffith nasceu em 22 de Janeiro de 1875 no estado do Kentucky, filho de Jacob Griffith, um colono americano considerado herói de Guerra na chamada Guerra Civil Americana, finalizada dez anos antes do nascimento de seu filho.
        Mas o que afirma de tão absurdo para nós, esta obra de Griffith e em que contexto histórico ela está inserida?
        Griffith foi um jovem cineasta inovador, aclamado pelo russo Sergei Eisenstein e por Charles Chaplin, que além das inovações técnicas e de filmagem trazidas por sua habilidade técnica para o Cinema, como a montagem de grandes planos de fundo, uso de grande quantidade de figurantes, e da linearidade progressiva no enredo, teve sua imagem muito, além disso, principalmente no que se refere às ideologias passadas em suas obras. 
         Refletir sobre a personalidade de Griffith – sem eximi-lo de toda a sua culpa, e em contraponto, sem maniqueizá-lo demais - é ainda hoje bastante dificultoso, pois não temos ainda o limite certo do que podemos afirmar sobre o que é de seu pensamento individual em relação ao pensamento coletivo. Enfim, o eterno questionamento feito, é se os julgamentos efetuados em torno de seu exacerbado racismo são efetivamente justos, quando consideramos ou não o contexto da época?!
        Segundo Rosenstone, “Hoje, temos de ser cautelosos ao elogiar este filme por causa de seu caráter abertamente racista, repleto de estereótipos cruéis afro-americanos como pessoas bárbaras, sem instrução e sem cultura.” (Rosenstone,2010, p.30).
        Contudo, mais interessante está em observar que:
“A sua representação da Guerra Civil Americana, a sua visão do Sul como vitima das depredações dos ex-escravos e dos oportunistas do Norte durante a reconstrução, a sua exaltação dos integrantes da Ku Klux Klan como heróis do conflito racial e seus estereótipos terríveis dos afro-americanos eram (infelizmente) reflexos diretos das principais interpretações da época em que o filme foi produzido – não apenas das crenças das ruas, mas do saber da mais poderosa escola de historiadores americanos daquele período” (Rosenstone, 2010, p.30).
        Enfim, ao que parece o “artefato cultural” que nos aparece com o filme “O Nascimento da Nação” nos leva a concluir que Darren Griffith foi talvez o espelho ideal de uma ala do pensamento norte – americano pós – secessão: Racista.  Esta ala de pensamento era tão forte quanto nós podemos supor, atingindo campos da sociedade – os intelectualizados – que teoricamente deviam compreender o quão é nefasto e horrendo qualquer tipo de preconceito existente.
        Mas não era esse o quadro. Ao que parece, seu filme não era “nem uma interpretação pessoal bizarra nem uma interpretação puramente comercial da Guerra Civil Americana e da Reconstrução, mas que, na verdade, era um reflexo razoável da melhor história acadêmica de sua própria época, o inicio do século XX.” (Rosenstone, 2010, p.44).
        Isso é tão verdadeiro que, como nos mostra Rosenstone, no momento de lançamento da obra, esta acabou sendo rodada em especial, na Casa Branca para o então presidente americano Woodrow Wilson, que sulista convicto, ficou bastante emocionado com a representação apresentada no filme, aprovando o possível caráter “realista” da obra, para afirmar: “É como escrever história com raios. E meu único pesar é que tudo aquilo é terrivelmente verdadeiro.” (Rosenstone, 2010, p.30).


Woodrow Wilson: Racista convito.

          Woodrow Wilson foi o mesmo que idealizou o projeto da sociedade das nações durante a primeira guerra mundial, mas ficara também famoso por suas convicções racistas, tendo reduzido drasticamente em sua politica interna, a participação efetiva dos negros americanos na política.     Enfim, o Cineasta, o Presidente sulista, o fazendeiro e tantos outros mantinham um preconceito racial tão forte, que esta atitude parecia naturalizada dentro do seio norte – americano. Isto tudo também se intensificou com a difusão da horrenda ciência da eugenia, que partindo da Inglaterra, atinge os Estados Unidos, onde vai ganhar grande parte dos seus incentivos, e também de seus teóricos.

        O Racismo se solidificava numa época -  como sabemos – onde toda uma ordem de estereótipos, de preconceitos – contra judeus, ciganos, homossexuais -  queria fazer parecer um traço comum em grande parte das civilizações.

      Aqui no nosso país, Monteiro Lobato, consagrado escritor nacional, era visivelmente adepto do ideário eugenista norte – americano, gritando em suas obras “nacionalistas” que a culpa do atraso do país estava na forte miscigenação histórica porque passara o país. Seu livro “O Presidente Negro” escrito e lançado em solos americanos, evidencia todo o seu pensamento. Aliás, a figura da Tia Anastácia, pouco conhecida pelas linhas da pena de Monteiro, e mais pela recriação doce do seriado televisão, é por Lobato mesmo execrada constantemente nas histórias do sitio do pica – pau amarelo. 

Monteiro Lobato: eugenista tupiniquim

        Enfim, o que nos cabe entender aqui para a correta analise de “O Nascimento de uma Nação” é que esta película foi inspirada em uma obra literária do escritor Thomas Dixon Jr, que depois se tornou uma peça teatral, chamada “The Clansman”, de onde em todas as paginas da obra, emerge uma caracterização romântica da atuação da Ku Klux Khan envolta a um fundamentalismo religioso protestante muito forte, e é claro, rodeada de um preconceito racial fortíssimo, admitido e aceito por toda a sociedade, sejam os leigos ou os acadêmicos estudiosos da época.



The Clansman: A KKK.

       Fato é que no filme, algumas cenas emergem com grande terror para o publico do nosso tempo, como por exemplo, há uma cena em que membros da Ku Klux Khan “heroicamente”, na visão americana da época, assassinam através de um linchamento a um escravo que havia cometido um crime. Mais interessante e que está dosado de um alto caráter pitoresco está na presença de inúmeros atores brancos pintados com tinta preta para poderem interpretar escravos. Isso não significa que no filme não há atores negros. Existem, mas nas cenas com personagens brancas, para “aterrorizar” os atores brancos eram pintados pitorescamente para contracenar com elas. Talvez uma das cenas mais representativas do filme esteja na cena em que a personagem Flora corre em direção a um abismo para que o “Negro Gus” não a toque.

" O Negro Gus sendo linxado pela KKK": O Blackface


      É interessante notar que durante a época era bastante comum até ocorrer estas caracterizações de personagens negros a partir de atores brancos pintados a tinta. Era o chamado artifício do “Blackface”. – Sobre este fenômeno, explicarei com mais atenção na próxima postagem do blog.
        Não obstante, o primeiro grande filme falado da história do Cinema chamado “O Cantor de Jazz” fez uso intenso desse artifício na criação de seu personagem principal. O Ator Al Jolson para interpretar um jovem cantor emergente negro chamado Jack Robin, atuou pintado no decorrer de toda a película.
        O pesquisador americano Corin Willis, manifestou concisamente a sua opinião sobre o uso da face negra pintada pela personagem Jack Robin em O Cantor de Jazz, ao afirmar que esta situação é:

                “Uma exploração artística e expressiva da noção de duplicidade e hibridismo étnico dentro do que pode ser chamada identidade norte-americana. Dos mais de setenta exemplos de rosto pintado nos primeiros filmes sonoros de 1927 a 1953 que eu vi mesmo as novas aparições de Jolson em outros filmes, The Jazz Singer é único e o único onde a face pintada de negro é central ao desenvolvimento narrativo e temático.” (Willis, 2005, p.127)
O Cantor de Jazz.
            Mais interessante ainda, e o que é basicamente despercebido a despeito de toda a fama e o romantismo estético e hollywoodiano que a perfaz, está no aclamado e reconhecido filme “E o Vento Levou”, dirigido pelo também aclamado diretor Victor Fleming, o mesmo que dirigiria nove anos depois o clássico “Joana D´arc”, da produtora MGM ou Metro Goldwyn Mayer, aquela produtora cujo presidente pedira o máximo possível de fidelidade histórica durante a criação das películas.

        Neste filme, de 1938, basicamente quase tudo passou despercebido. Ao que parece o romantismo e a perfeição estética das musicas e da fotografia do filme, que encantam e merecem encantar até hoje, ajudaram a apagar ou a esquecer o pano de fundo muitas vezes também racista desta obra. No filme, mais uma vez, os colonos são vistos como bons senhores vitimados pela ação assassina dos ex-escravos. Os personagens negros também são representados bem caricatamente em uma das vertentes possíveis de se velar um artifício “Blackface”. – Será explicada na próxima postagem.

" E o vento levou": O Racismo Velado no Romantismo da obra.
        Enfim, poderíamos ficar aqui eternamente citando o forte teor racista que perfaz toda a obra “O Nascimento de uma Nação”, como demais clássicos americanos do período. Sugiro a prática da visualização da obra e das demais citadas, que será mais ilustrativo do que as minhas meras citações.

        Todas as cartelas do filme “O Nascimento de uma Nação” espelham tudo isto que foi afirmado. Afirma-se, sem existir a certeza, que Darren Griffith chegou a afirmar durante a cena do assassinato do escravo pelos membros arianos da Ku Klux Khan que os negros seriam parte “de um renegado, um produto das doutrinas imorais espalhadas pelos republicanos."

        Enfim, após todo o termo de execução da película, nos Estados Unidos tornou-se um sucesso imediato de bilheteria e críticas, contudo, na Europa o ambiente de recepção da obra foi de intensas criticas depreciativas. Como resultado, Darren Griffith imediatamente dá inicio a sua cartada de inteligência encontrada na realização do ano seguinte chamada justamente e concisamente “Intolerância”, cujo enredo entrelaça quatro histórias ocorridas no decorrer de toda a história da humanidade, da Babilônia a Jesus Cristo, e principalmente até os dias americanos contemporâneos da situação operaria, onde Griffith as utiliza para construir um filme de fortíssimo teor moral, onde para ele, a intolerância no decorrer do século impossibilitou a concretização perfeita do ideal do amor. 

Intolerância (1916): Uma contradição de Griffith?!
        A Despeito de todo o enredo das quatro historietas que se decorrem e se entrelaçam no decorrer de todo o filme, convergindo para o mesmo final, achamos conveniente aqui não delongar demais sobre cada uma delas. Cabe-nos apenas destacar o caráter fantástico do filme, e que justamente por isso, engendra toda a polêmica sobre o caráter dúbio de Griffith: Genio, porém, racista.

        A película “Intolerância” é belíssima, foi feita encima de um vasto investimento tomado por um orgulho e uma necessidade de resposta as criticas por parte de Griffith. O Resultado foi uma participação direta do mesmo, que a partir das cartelas de legendas durante o decorrer do filme, exibi sua poética e seu saber histórico para exprimir sua indignação em torno da Intolerância. 

É em suma, altamente contraditório, mas suas palavras nestas cartelas e toda a ligação das histórias que ligam a Babilônia traída por um sacerdote, a morte de Jesus, inclusive com inúmeras passagens da Bíblia, a Intolerância religiosa que levou ao conhecido Massacre de São Bartolomeu na França dita moderna, contudo toda a carga dramática fica a cargo principalmente da triste situação da injustiça de vida feita graças à ação das reformadoras das fabricas na história da “Queridinha” e de seu marido que quase perde a vida ao fim.

        Os quadros do filme são perfeitos, as cenas de guerra na Babilônia são impressionantes para os investimentos da época, e principalmente a capacidade de ligação entre as histórias e a poética desenvolvida por Griffith nos deixa extasiados, e cada vez mais confusos.

        Sua Metáfora principal está na ligação das histórias no decorrer do filme, a partir da passagem da “Mãe que balança o berço da Humanidade”, algo que se assemelha a uma simples alusão de que a humanidade ainda remonta a um bebê que precisa amadurecer para ser algum dia feliz, ultrapassando esses entraves da “Intolerância” para atingir esse fim.

        Contudo, nas quatro histórias que se seguem, não há um só negro, ou evidencia de intolerância contra eles. Há todo o tipo de intolerância: religiosa, moral e até de prazeres. Mas não há intolerância racial ou étnica. Seria então somente um debate sobre a intolerância em relação ao mundo ariano eugenista norte - americano?


Conclusão



        Assim encerramos este breve artigo. Não nos foi dada a intenção de defender este ou aquele cineasta, muito menos sortir de elogios as suas películas, mas a partir da frutífera relação Cinema – História pareceu ser oportuna a oportunidade de entender os referidos filmes a partir de seu contexto histórico nos quais surtiram como “artefatos culturais” que nos foram deixados, como espelhos dos pensamentos de outrora, nos trazendo a tona, idéias, preconceitos e conflitos que refletiam as Ideologias de uma época, que podem assim ser evidenciadas através de tais obras.  O Racismo como parte integrante de forma política e cientifica – eugenia na ciência e nas políticas de estado mundiais – se apresenta assim como um fenômeno marcante àquela época, mas que nos faz refletir ainda hoje, de que forma o racismo e o preconceito continuam a se expressar, com novas mascaras, mais veladas, mais hipócritas. Sobre isto, é o que tentaremos refletir na próxima postagem.


Referência bibliográfica:  

 ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, 262 p.



Ass: Rafael Costa Prata

Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.








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2 comentários:

  1. O nome do cineasta D.W. Griffith não estaria errado aí acima no texto? Darren? O nome verdadeiro dele é David Llewelyn Wark Griffith, ou apenas, David Wark Griffith.

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  2. O contéudo do blog é muito bom. Mas a formatação visual é de difícil leitura nas cores usadas de fundo e nessa cor amarela dos textos principalmente no fundo branco.

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