sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Pequena vendedora de fósforos


            Nessa nossa correria cotidiana, onde pululam estudos, trabalho, e toda uma gama de obrigações possíveis, se torna até difícil encontrar uma brecha no tempo – ótimo seria possuir a faculdade mágica de pará-lo de acordo com a nossa vontade – para respirarmos um pouco mais de nossos hobbys que acabam esquecidos, preteridos, relegados diante disso tudo. 
          Meu maior hobby é a História. Isso é fato. Junto com ela, vem o Cinema. Para aqueles que porventura se encontrem nessa situação de escassez de tempo, uma possibilidade está justamente em recorrer aos chamados Curtas – Metragens.
         Obviamente que não faço menção a estes apenas como subsídios alternativos na ausência do tempo, pelo contrário, apenas reforço suas qualidades diante dessa conjuntura. Enfim, os curtas que podem ser tidos até como pílulas cinematográficas – muitas vezes mais significativas e com dose de Arte Total do que obras com temporalidade comum do Cinema – acabaram me aparecendo como o comprimido diário da minha inseparável relação Cinema – História.
               É daí que num desses dias de correria, entre a leitura de obras, entre as idas para o estágio, feituras de resenhas para as disciplinas, que num intervalo para almoço/ respirar, acabei por encontrar um curta-metragem, uma animação, com apenas sete minutos de extensão.  Inicialmente, o próprio titulo já me chamou a atenção: “A Pequena vendedora de fósforos.” Mais ainda quando eu percebi que junto ao pôster do curta, havia a indicação que ele havia concorrido ao Oscar de melhor curta no ano de 2007, quando fora produzido. Mas não havia ganhado. Mais um motivo para vê-lo.

Poster de divulgação de " A Pequena vendedora de fósforos"



           Consegui baixá-lo e procurei assisti-lo com total concentração diante da efemeridade de sua sustância, de seus sete minutos. O Resultado produzido é que temos quase 420 segundos da mais pura dramaticidade e da mais bela pureza narrativa. Uma estória contada evidentemente triste. Contudo, real. Doce e ao mesmo tempo triste. Reflexiva acima de tudo. Histórica porque se baseou em um conto revelador da natureza de um tempo especifico da história de nossa humanidade.
         Sem mais rodeios, o curta “A Pequena vendedora de Fósforos”, foi baseada no conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805 – 1875), mundialmente conhecido por seus contos aparentemente infantis, mas que em verdade, possuem no seu sentido latente, uma carga puramente histórica, que ultrapassa a típica doçura e leveza das historinhas infantis. 

H.C. Andersen: Um olhar aguçado ao seu tempo.
Aliás, quase como todas as histórias de conto de fadas. Grande parte delas, como João e Maria, ou originalmente Hansel e Gretel, um conto de tradição oral, coletado pelos reconhecidos Irmãos Grimm, a qual narra a triste história de um casal de irmãos, filho de um pobre lenhador, que acaba por abandoná-los na floresta por não ter condições de criá-los, entregando-os então as agruras da pobreza, da miséria. Estes então levam consigo pedaços de pão, que procuram soltar no meio do caminho, para marcar o caminho de casa, mas os pombos comem suas marcas deixadas. 
   Enfim, é uma história já conhecida e próxima de nossa realidade infantil. Na versão atual, temos que o casal de crianças conseguiu retornar aos braços do pai. Um final feliz. Mas não o que ocorre, conta-se, na sua versão original. Nesta, o casal de irmãos, ao matarem a bruxa, esquartejam-na e a comem devido a sua fome. Ademais, a história original estaria diretamente ligada a momentos conturbados da Idade Média, principalmente quando a fome estaria assolando as populações camponesas. O próprio cenário da floresta, que para o homem medieval, possuía um sentido mágico, assustador, onde residia o pecado, as bruxas, os loucos, os eremitas, e toda ordem de elementos do desconhecido, ajuda a evidenciar isso tudo.

Hansel e Gretel: A miséria infantil como pano de fundo

         Enfim, diferentemente de João e Maria, Hansel e Gretel, a história da nossa pequena vendedora de fósforos não foi atualizada, não teve seus meandros mudados, mantivera sua estrutura original.  Seu contexto histórico é o século XIX. Sua casa é a “Santa Rússia Imperial Czarista”. Sua história se passa provavelmente entre os anos de 1875 a 1890, período em que aquele grande país, um “gigante de pés de barro” deixava evidenciar toda a sua rede de contrastes. 
           O Historiador Daniel Aarão Filho deixa-nos tudo isto claro. A Rússia àquela época era ainda formada por uma grande composição rural – 80%– uma massa que vivia em meio ao atraso produtivo, com arados de madeira e mãos nuas para produzir. Em contrapartida, o eixo urbano passava por intensas transformações, devido a formação de bolsões tecnológicos, que na medida em que fomentava a uma melhoria de vida para um pequeno grupo de privilegiados nas cidades, só ajudava a demonstrar como era fato o grande traço de contrastes, de desigualdades entre os segmentos sociais da Rússia Czarista.
Mormente todo este quadro, entre 1860 até 1914, como cita Aarão Filho, o crescimento demográfico russo foi fulgurante. Uma média de 2,4 milhões por ano. Uma massa que rezava pelo bem estar do “paizinho”, visto como o representante nato de Deus na Terra. Rezava-se para que este predestinado lhes diminuísse as carências de vida; rogava-lhes por melhorias, por cobertas para as noites frias de São Petersburgo. Quem mais lhe rogava, eram justamente os mujiques – estes camponeses- ora no campo, ora na cidade, após um êxodo forte que os fazia agora parte de um excedente sem rumo e sem destino na capital econômica e política russa. Conseguindo emprego nas novas fabricas ótimo. Não obtendo este recurso, talvez esperar o encargo do destino.

O Czar no centro: Na ordodoxia russa, ele era um representante de Deus na Terra.

         É deste plano de fundo histórico que nasce a nossa doce historinha.
         Somos levados ao drama da pequena vendedora de fósforos. Uma doce garotinha de provavelmente seus oito anos que sobrevive nas frias ruas de São Petersburgo, tentando ganhar sua vida, vendendo palitos de fósforo para os passantes. O Fósforo era o fogo para conter o frio. Mas todos aqueles que passavam não davam conta de sua existência. Era um alguém no meio daquela multidão de gente. Alguém que não deveria ser visto. Aliás, ninguém a via. Todos estavam cegos diante de sua existência. Menos o policial que a impede de subir a um poste de luz, quando esta tentava se tornar mais alta diante dos olhos daquelas pessoas, e assim tentar aumentar sua chance de êxito nas vendas.
         Não vende nada. Seus pés estão frios. Ela está sozinha. Sozinha com seus raros palitos em sua pequena caixinha. Dos seus pés frios, somente meias furadas e nenhum sapato. No seu rosto, a desilusão da vida e a tristeza da miséria. Ninguém sabe o seu passado. Quem é essa menina? Qual seu nome? Porventura teria ela nome? Maria? Sônia? Nomes naturalmente russos! Mas não sabemos. Seu nome era expressão de sua situação. Talvez codinome criança pobre nas ruas, talvez codinome povo em geral.

A pequena vendedora de fósforos: Nas ruas frias e congestionadas, ninguém vê-la. Ou finge-se não ver.

         Enfim, na desilusão da fria noite russa, ela visualiza os antagonismos da vida. Vê crianças como ela, no colo dos seus pais, andando de boas charretes, comprando presentes e sorrindo com seus pais, naquela noite fria de Natal ou de Ano novo. Que seja qual for a festividade. Para ela nada mudava mesmo. Sua situação era única todos os dias. Fósforos, e desilusões. 

Talvez do alto, ela conseguia ser percebida!

         Caindo a noite, não tem onde deitar. Prefere então manter-se acolhida em mais uma das vielas daquela assombrosa cidade, retrato vivo do janus russo, moeda com face de deus romano que representa o passado e o futuro na mesma instância, mas que não deixa esconder as mesmíssimas contradições e opressões da vida.
         Seu leito é o seu próprio corpo. Sua camisa mirrada. Tenta esconder o frio dos pés, mas é uma atitude inútil, na medida em que cobre uma parte, mas deixa nua outra parte do corpo. Para aplacar o frio, vai recorrer ao seu próprio meio de vida. Quem lhe salvará? Seus fósforos!
         Procura no primeiro palito, o furor da pálida chama para conter todo o seu frio – frio intenso, números negativos quem sabe, Rússia – também a sua fome contida. Com o ascender do fogo, ascendem-se também as suas esperanças, os seus sonhos. É a chama da vida que nela teme em não apagar! Na verdade porque apagaria, se mal acabou de ser aceso? É uma criança! Tem toda uma fogueira da vida pra manter acesa!
         No primeiro palito aceso, vê num velho forno afundado em meio a neve do chão, a realidade de um sonho; enxerga-se diante desse mesmo forno, uma lareira para o seu frio. Esquenta seus pés, suas mãos. Mas é tudo ilusão. Volta do seu transe. De sua utopia. O Palito apaga-se e com ela sua alegria, seu subterfúgio.
         Acende o segundo fósforo. Só lhe restam mais cinco fósforos. O Frio lhe maltrata. É necessário mais do que nunca, fugir. Aceso. Ah como a visão agora lhe agracia e lhe atormenta! É comida! Frango! Um frango gordo como nunca imaginaria ter em sua mesa. Em mãos ao menos, porque mesa é para quem tem casa. Nem isso hoje, ela porventura tem.

A Primeira Chama

         Acaba a sua ilusão mais uma vez, e o anuncio de sua catástase começa a aparecer. É o vício do fósforo. Acende mais um: É levada por cavalos e charretes como aqueles vistos naquela mesma noite! Parece tudo tão real diante de seus olhos! É levada então a uma casinha distante! Talvez numa floresta russa! Lá está uma velhinha, talvez sua mãe, talvez sua avó! Uma casinha e uma mulher tão longe, tão distante, só possível talvez em seu âmago mais profundo! Chegando lá, ela procura olhar pela janela gélida se há realmente alguém naquele sonho impossível. Bate na porta, a velhinha a atende, mas quando ia abraçá-lo, o sonho apagou. O Fósforo. E o peito dela ia queimando. Queimando de dor. Quero retornar ao meu sonho. Eu quero o paraíso agora. Meu Éden. Acende então de uma única vez, seus últimos três fósforos, procurando trazer de volta seu maior sonho, e mantê-lo vivo o mais tempo possível, sem contar que com essa apocalíptica medida, findara com todos os seus meios de sobrevivência. Pouco importa. O Fogo agora forte, a leva de volta àquela velhinha dos grandes braços abertos. É lá onde ela quer ficar: abraça, ama e chora!
         Ela é uma velhinha mãe – avô como todas as outras. É a sua mãe. É a sua avó. Prostra-se diante de uma grande arvore de Natal. Um de seus sonhos. Sua fé ainda é viva. Acende as velas da esperança de cada um dos estamentos daquela grande arvore, mas na ultima grande estrela, no cume da arvore, o fogo acaba definitivamente. Ela vê que diante de si, não tem mais do que as estrelas frias do céu, ofuscadas pelo cair maciço das neves.

O Grande sonho: A Arvore de Natal



         Ela então dorme. “Dorme para a eternidade”. A Mãe Rússia como que então aparece de seu sonho para levá-la. Levá-lo para o mundo da infinitude. Talvez a morte seja a solução melhor. Não há mais frio, não há mais fome. Numa das mais belas cenas que eu já vi na vida, a mãe Rússia leva sua essência, sua alma, para além daquelas paredes, e seu corpo frio, permanece ali, esquecido, morto, talvez na espera da neve que caia e lhe esconda da vista daqueles que em vida nunca a viram. Não fará diferença. Agora ela está com a mãe Rússia, a mãe a quem sempre confiara como alguém que lhe daria a paz, a comida, o manto, o abraço materno, o amor.

O Ultimo sono: Os palitos queimados junto aos pés descalços.

Vivera e sonhara com esta grande mãe Rússia. Essa grande utopia. Morrera com ela. Sem nome. Sem fósforos. Mas com a fé acesa. A Certeza: Assim como ela, outras tantas crianças morreram. Projetos de Gente. Com sonhos e desilusões.  A Fé e a Espera.

“Quando cai urna estrela, é que uma alma está voando para Deus”

         É realmente um belíssimo curta – animação. Simples, doce, triste, verdadeiramente real. Para aumentar a qualidade da obra, a sua trilha sonora é fantástica e fala por si só, já que o curta é praticamente mudo. A criança não fale, a sonoridade triste fala por ela. Emociona por ela.
         Tal grandeza de adaptação da obra literária para o curta não surpreende, quando percebemos que o diretor da animação é o aclamado Roger Allers, o mesmo que ganhara o Oscar com a maior animação de todos os tempos, na minha singela opinião, o Rei Leão, também um conto dito infantil, mas que o caráter existencial, revela muito mais do que uma mera historinha para criança, discutindo questões como amor, traição, regeneração, perda, recomeço, religiosidade e outras tantas temáticas.
         “A Pequena vendedora de fósforos” não ganhou o Oscar. O que obviamente não quer dizer nada. Aliás, como os curtas conseguem dizer tudo, ou quase tudo, com a rapidez de suas poucas imagens. 7 minutos. 7 minutos que conseguem abarcar um sentimento que muitas películas de 2 horas e meia não conseguem recriar.
         Enfim, estou encerrando aqui este comentário.  Termino ratificando como vale assistir este curta. Rápido, não será tempo perdido, muito pelo contrário. Veja e espalhe. Reflita. Estou postando logo abaixo o curta para que todos visualizem.


         Enfim, é só. Até +

2 comentários:

  1. Adorei, adorei Rafa. Seus textos são muto suscintos e claros, além de serem bastante informativos. Meus parabéns. Vou baixar essa animação pra mim, com certeza. Durante muito tempo eu apenas li o conto várias vezes, mas agora posso finalmente vê-lo. É por isso que adoro cinema, por essa capacidade incrível de tornar real aquilo que imaginamos, e mais do que isso, de sempre nos surpreender. Outro ponto positivo da sua publicação, foi informar aos 'desavisados' como nasceram os ditos 'contos de fadas' que hoje contamos para nossas crinaças, aguçando a imaginação delas, assim como foram aguçadas as nossas, quando nossos pais contaram para nós. É interesante revelar que esses contos longe de quererem entreter as pessoas da idade média [Era em que a maioria desses contos nasceram] tinham uma função social e porque não dizer histórica. No livro O grande massacre de gatos de Robert Darnton, no capítulo [eu acho que é capítulo] Contos da Mamãe ganso, isso é muito bem explicado para nós. Mais uma vez parabéns pela belíssima postagem!

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  2. muito fixe adorei foi o melhor texo que li em toda a milha vida adorei adorei

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