E foi então que lá no distante ano de
1970, o cantor e compositor Chico Buarque lança o single “Apesar de você”, uma
canção que, a primeira vista, se apresenta como mais uma música romântica de
desilusão, uma briga entre namorados, um lamento de casal. O próprio Chico
Buarque, quando “perguntado” sobre o sentido da música teria dito que a música
fala sobre uma “mulher muito autoritaria, muito mandona”.
Fora um censor quem havia perguntado o
sentido da mesma. Censor da ditadura militar brasileira iniciada em 1964, e que
só se extinguiria por completo em 1989. Pois é, mas na prática, a “mulher” que Chico Buarque menciona na letra da
canção nunca foi uma companheira de seu passado, mas sim o terror do presente:
ela, a ditadura, essa mulher autoritária e mandona, censora, punitiva,
assassina.
O Lp do Single "Apesar de você" do ano de 1970. |
Justamente para burlar os olhares ávidos
desses censores é que Buarque escreve essa canção metafórica e subliminar com claro conteúdo de crítica ao regime. No entanto, o sentido da
música inicialmente passou despercebido pelos próprios censores do sistema.
Foi em 1971 que os censores realmente
compreenderam o sentido da canção, e após isso, obviamente que de imediato
mandaram parar a sua execução nas rádios, e mandaram quebrar todas as cópias do
disco single de Buarque na sede da Phillips, sua gravadora.
Foi justamente após essa “percepção” dos
censores que Chico teve de se explicar, como citei no inicio do texto, acerca
da natureza da “Mulher” da canção. Explicou mas não adiantou muito. Chico
ficaria marcado pela ditadura, todos os seus passos seguidos, sendo suas
músicas, até aquelas que realmente não possuíam sentido político, passam a
agora a serem lidas, relidas com atenção, e censuradas pra evitar o “erro” de
outrora.
Ao analisarmos com calma o conteúdo da
letra, podemos perceber de certa forma até de forma clara, a forte crítica
residente na mesma. Na primeira estrofe, Chico afirma:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O Perdão
Ora,
a música já se inicia afirmando o autoritarismo da dita “mulher” pois “hoje é
você quem manda”. “Não tem discussão”. Mas nessa estrofe também podemos notar
uma centelha de esperança quando este coloca o “hoje”. “Hoje é você quem manda”.
Amanhã, pode ser que não mais.
O compositor continua nas estrofes seguintes:
Apesar
de você
Amanhã
há de ser
Outro
dia
Eu
pergunto a você
Onde
vai se esconder
Da
enorme euforia
Como
vai proibir
Quando
o galo insistir
Em
cantar
Água
nova brotando
E
a gente se amando
Sem parar
Quando
chegar o momento
Esse
meu sofrimento
Vou
cobrar com juros, juro
Todo
esse amor reprimido
Esse
grito contido
Este
samba no escuro
Você
que inventou a tristeza
Ora,
tenha a fineza
De
desinventar
Você
vai pagar e é dobrado
Cada
lágrima rolada
Nesse
meu penar
Apesar
de você
Amanhã
há de ser
Outro
dia
Inda
pago pra ver
O
jardim florecer
Qual
você não queria
Você
vai se amargar
Vendo
o dia raiar
Sem
lhe pedir licença
E
eu vou morrer de rir
Que
esse dia há de vir
Antes
do que você pensa
Apesar
de você
Amanhã
há de ser
Outro
dia
Você
vai ter que ver
A
manhã renascer
E
esbanjar poesia
Como
vai se explicar
Vendo
o céu clarear
De
repente, impunemente
Como
vai abafar
Nosso
coro a cantar
Na
sua frente
Apesar
de você
Amanhã
há de ser
Outro
dia
Você
vai se dar mal
Etc.
E tal
Apesar
de você ditadura, amanhã alcançaremos uma nova fase, te superaremos. Uma nova
fase chegará... E nas estrofes seguintes, Chico Buarque continua a cantar, a
sua alegria ao ver chegada a hora de um novo momento, o tempo em que a ditadura
“vai se dar mal”, quando as pessoas passaram a puder exprimir, com juros, todo
o amor reprimido, proibido a tempos.
A Canção se tornou um Hino na luta contra a ditadura |
Enfim, são estrofes de um conteúdo crítico bastante alto, uma verdadeira “afronta” a ditadura militar. Praticamente uma “ameaça”..
Uma letra bastante subversiva que soube bater de frente ao sistema!
Ass:
Rafael Prata
Mestrando
em História pela Universidade Federal de Sergipe
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