quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Cinema para entender o Racismo. (Part.1)


1. Introdução: Porque o Cinema?

 

         Discutir a problemática concernente aos variados modos de difusão da Intolerância em nossos tempos, nos leva diretamente ao resgate de um Passado, que de outrora nos parece tão distante, emerge com uma força histórica significativa a ponto de suscitar reflexões sobre a mesma, ainda nos mais variados segmentos da sociedade, seja no campo sócio-cultural ou em outros campos representativos da sociedade.

        Não obstante, em um primeiro olhar, nos parece estranho desviar nossa reflexão, sobretudo aos primórdios da Arte Cinematográfica e entrever ali os resquícios de um estudo, de uma possível reflexão ou simplesmente do espelho refletor das variadas formas de Intolerância que emergiram no caminhar da humanidade durante os séculos.

        Remontar aos primórdios do Cinema é uma atitude ousada, cujos fins e compromissos podem não ser atingidos, mas a premissa com que partimos aqui, é justamente de tentar enxergar uma “contra-analise” da sociedade a partir de certas obras clássicas daquele momento que podem e refletem o sentido e pensamento de uma civilização ou nação de outrora, fazendo da teoria uma pratica da viabilidade do campo do Cinema, como propunha Marc Ferro.

        Esta ousadia é puro reflexo de uma atitude inovadora em respeito à importância da Imagética em geral, iniciada principalmente a partir da década de 60, quando o movimento Annalles revolucionou o campo metodológico da História, dando em profusão um sentido viável de fontes que ultrapassa o mero limite das paginas escritas.

        É certo que a aceitação dessa viabilidade, no que toca ao campo do Cinema, ainda encontra inúmeras barreiras dentro do seio acadêmico, muito ainda pela incapacidade ou falta de apreço dos mesmos em procurar enxergar uma aceitação, um meio de entender os filmes ou tudo que possa ser Imagem como algo com valor histórico, que possa reconstruir de certa forma, ou ao mínimo imaginar um sentido para o Passado ou, sobretudo a maneira como as pessoas pensavam o mundo a sua volta.

        Assim, o Cinema, como mais um espelho das mentalidades, pode nos ajudar a compreender os estereótipos, os preconceitos arraigados em determinado momento histórico, e é a partir desta menção, que inicio a analise seguindo, tomando como referencial,  cineastas e obras importantíssimas – e reconhecidas dentro da História do Cinema –  que nos ajudam a compreender o racismo, o preconceito, que era expelido com certa naturalidade em dado plano histórico.

2. O Caso Clássico: Darren Griffith e a sua obra “O Nascimento de uma Nação”.

           Quando em 1915, o jovem cineasta Darren Wark Griffith lançou sua obra “O Nascimento de uma Nação”, talvez não imaginasse o estardalhaço que aquela película iria causar não somente nos Estados Unidos, como também em todo o Mundo onde fora rodado seu filme. Todo esse estardalhaço, muito além do que podemos inferir, nos ajuda a entender a ideologia e os pensamentos de uma época, como também a evitar pensamentos maniqueístas quanto a “monstruosidade” de uma pessoa, como sendo parte única de um pensamento, que como veremos, fazia parte de um todo.  


O Nascimento de uma Nação: A História dos Estados Unidos pelo viés racista.

       Não se trata aqui de uma defesa, mas sim de posicionar as atitudes e os pensamentos do cineasta frente às estruturas históricas de seu tempo – o que obviamente não exime sua culpa – para observar então como o Racismo obteve uma presença fortíssima na construção de sua imagem.
        Griffith se torna cada vez mais controverso quando levamos sua obra mais conhecida, de cunho altamente racista em comparação com obras seguintes, nos levando a refletir sobre sua personalidade e a partir daí entender então a sociedade americana a época – sem generalizações é claro. Afinal, após lançar esta sua obra acachapante, Griffith, um ano depois, lançava no Mercado mundial, uma película intitulada “Intolerância”. 




   Griffith: Grande cineasta, o pai da montagem; contudo, um racista.


            Sendo assim, esta situação nos parece uma contradição e um absurdo evidente e difícil de entender e contextualizar historicamente. Contudo, para entendê-la é necessário que façamos um exame sobre o estatuto da obra, de seu autor, e, sobretudo de todo o contexto histórico americano vivido a princípios do século XX, quando do recente fim da chamada Guerra da Secessão Americana. 
          Griffith nasceu em 22 de Janeiro de 1875 no estado do Kentucky, filho de Jacob Griffith, um colono americano considerado herói de Guerra na chamada Guerra Civil Americana, finalizada dez anos antes do nascimento de seu filho.
        Mas o que afirma de tão absurdo para nós, esta obra de Griffith e em que contexto histórico ela está inserida?
        Griffith foi um jovem cineasta inovador, aclamado pelo russo Sergei Eisenstein e por Charles Chaplin, que além das inovações técnicas e de filmagem trazidas por sua habilidade técnica para o Cinema, como a montagem de grandes planos de fundo, uso de grande quantidade de figurantes, e da linearidade progressiva no enredo, teve sua imagem muito, além disso, principalmente no que se refere às ideologias passadas em suas obras. 
         Refletir sobre a personalidade de Griffith – sem eximi-lo de toda a sua culpa, e em contraponto, sem maniqueizá-lo demais - é ainda hoje bastante dificultoso, pois não temos ainda o limite certo do que podemos afirmar sobre o que é de seu pensamento individual em relação ao pensamento coletivo. Enfim, o eterno questionamento feito, é se os julgamentos efetuados em torno de seu exacerbado racismo são efetivamente justos, quando consideramos ou não o contexto da época?!
        Segundo Rosenstone, “Hoje, temos de ser cautelosos ao elogiar este filme por causa de seu caráter abertamente racista, repleto de estereótipos cruéis afro-americanos como pessoas bárbaras, sem instrução e sem cultura.” (Rosenstone,2010, p.30).
        Contudo, mais interessante está em observar que:
“A sua representação da Guerra Civil Americana, a sua visão do Sul como vitima das depredações dos ex-escravos e dos oportunistas do Norte durante a reconstrução, a sua exaltação dos integrantes da Ku Klux Klan como heróis do conflito racial e seus estereótipos terríveis dos afro-americanos eram (infelizmente) reflexos diretos das principais interpretações da época em que o filme foi produzido – não apenas das crenças das ruas, mas do saber da mais poderosa escola de historiadores americanos daquele período” (Rosenstone, 2010, p.30).
        Enfim, ao que parece o “artefato cultural” que nos aparece com o filme “O Nascimento da Nação” nos leva a concluir que Darren Griffith foi talvez o espelho ideal de uma ala do pensamento norte – americano pós – secessão: Racista.  Esta ala de pensamento era tão forte quanto nós podemos supor, atingindo campos da sociedade – os intelectualizados – que teoricamente deviam compreender o quão é nefasto e horrendo qualquer tipo de preconceito existente.
        Mas não era esse o quadro. Ao que parece, seu filme não era “nem uma interpretação pessoal bizarra nem uma interpretação puramente comercial da Guerra Civil Americana e da Reconstrução, mas que, na verdade, era um reflexo razoável da melhor história acadêmica de sua própria época, o inicio do século XX.” (Rosenstone, 2010, p.44).
        Isso é tão verdadeiro que, como nos mostra Rosenstone, no momento de lançamento da obra, esta acabou sendo rodada em especial, na Casa Branca para o então presidente americano Woodrow Wilson, que sulista convicto, ficou bastante emocionado com a representação apresentada no filme, aprovando o possível caráter “realista” da obra, para afirmar: “É como escrever história com raios. E meu único pesar é que tudo aquilo é terrivelmente verdadeiro.” (Rosenstone, 2010, p.30).


Woodrow Wilson: Racista convito.

          Woodrow Wilson foi o mesmo que idealizou o projeto da sociedade das nações durante a primeira guerra mundial, mas ficara também famoso por suas convicções racistas, tendo reduzido drasticamente em sua politica interna, a participação efetiva dos negros americanos na política.     Enfim, o Cineasta, o Presidente sulista, o fazendeiro e tantos outros mantinham um preconceito racial tão forte, que esta atitude parecia naturalizada dentro do seio norte – americano. Isto tudo também se intensificou com a difusão da horrenda ciência da eugenia, que partindo da Inglaterra, atinge os Estados Unidos, onde vai ganhar grande parte dos seus incentivos, e também de seus teóricos.

        O Racismo se solidificava numa época -  como sabemos – onde toda uma ordem de estereótipos, de preconceitos – contra judeus, ciganos, homossexuais -  queria fazer parecer um traço comum em grande parte das civilizações.

      Aqui no nosso país, Monteiro Lobato, consagrado escritor nacional, era visivelmente adepto do ideário eugenista norte – americano, gritando em suas obras “nacionalistas” que a culpa do atraso do país estava na forte miscigenação histórica porque passara o país. Seu livro “O Presidente Negro” escrito e lançado em solos americanos, evidencia todo o seu pensamento. Aliás, a figura da Tia Anastácia, pouco conhecida pelas linhas da pena de Monteiro, e mais pela recriação doce do seriado televisão, é por Lobato mesmo execrada constantemente nas histórias do sitio do pica – pau amarelo. 

Monteiro Lobato: eugenista tupiniquim

        Enfim, o que nos cabe entender aqui para a correta analise de “O Nascimento de uma Nação” é que esta película foi inspirada em uma obra literária do escritor Thomas Dixon Jr, que depois se tornou uma peça teatral, chamada “The Clansman”, de onde em todas as paginas da obra, emerge uma caracterização romântica da atuação da Ku Klux Khan envolta a um fundamentalismo religioso protestante muito forte, e é claro, rodeada de um preconceito racial fortíssimo, admitido e aceito por toda a sociedade, sejam os leigos ou os acadêmicos estudiosos da época.



The Clansman: A KKK.

       Fato é que no filme, algumas cenas emergem com grande terror para o publico do nosso tempo, como por exemplo, há uma cena em que membros da Ku Klux Khan “heroicamente”, na visão americana da época, assassinam através de um linchamento a um escravo que havia cometido um crime. Mais interessante e que está dosado de um alto caráter pitoresco está na presença de inúmeros atores brancos pintados com tinta preta para poderem interpretar escravos. Isso não significa que no filme não há atores negros. Existem, mas nas cenas com personagens brancas, para “aterrorizar” os atores brancos eram pintados pitorescamente para contracenar com elas. Talvez uma das cenas mais representativas do filme esteja na cena em que a personagem Flora corre em direção a um abismo para que o “Negro Gus” não a toque.

" O Negro Gus sendo linxado pela KKK": O Blackface


      É interessante notar que durante a época era bastante comum até ocorrer estas caracterizações de personagens negros a partir de atores brancos pintados a tinta. Era o chamado artifício do “Blackface”. – Sobre este fenômeno, explicarei com mais atenção na próxima postagem do blog.
        Não obstante, o primeiro grande filme falado da história do Cinema chamado “O Cantor de Jazz” fez uso intenso desse artifício na criação de seu personagem principal. O Ator Al Jolson para interpretar um jovem cantor emergente negro chamado Jack Robin, atuou pintado no decorrer de toda a película.
        O pesquisador americano Corin Willis, manifestou concisamente a sua opinião sobre o uso da face negra pintada pela personagem Jack Robin em O Cantor de Jazz, ao afirmar que esta situação é:

                “Uma exploração artística e expressiva da noção de duplicidade e hibridismo étnico dentro do que pode ser chamada identidade norte-americana. Dos mais de setenta exemplos de rosto pintado nos primeiros filmes sonoros de 1927 a 1953 que eu vi mesmo as novas aparições de Jolson em outros filmes, The Jazz Singer é único e o único onde a face pintada de negro é central ao desenvolvimento narrativo e temático.” (Willis, 2005, p.127)
O Cantor de Jazz.
            Mais interessante ainda, e o que é basicamente despercebido a despeito de toda a fama e o romantismo estético e hollywoodiano que a perfaz, está no aclamado e reconhecido filme “E o Vento Levou”, dirigido pelo também aclamado diretor Victor Fleming, o mesmo que dirigiria nove anos depois o clássico “Joana D´arc”, da produtora MGM ou Metro Goldwyn Mayer, aquela produtora cujo presidente pedira o máximo possível de fidelidade histórica durante a criação das películas.

        Neste filme, de 1938, basicamente quase tudo passou despercebido. Ao que parece o romantismo e a perfeição estética das musicas e da fotografia do filme, que encantam e merecem encantar até hoje, ajudaram a apagar ou a esquecer o pano de fundo muitas vezes também racista desta obra. No filme, mais uma vez, os colonos são vistos como bons senhores vitimados pela ação assassina dos ex-escravos. Os personagens negros também são representados bem caricatamente em uma das vertentes possíveis de se velar um artifício “Blackface”. – Será explicada na próxima postagem.

" E o vento levou": O Racismo Velado no Romantismo da obra.
        Enfim, poderíamos ficar aqui eternamente citando o forte teor racista que perfaz toda a obra “O Nascimento de uma Nação”, como demais clássicos americanos do período. Sugiro a prática da visualização da obra e das demais citadas, que será mais ilustrativo do que as minhas meras citações.

        Todas as cartelas do filme “O Nascimento de uma Nação” espelham tudo isto que foi afirmado. Afirma-se, sem existir a certeza, que Darren Griffith chegou a afirmar durante a cena do assassinato do escravo pelos membros arianos da Ku Klux Khan que os negros seriam parte “de um renegado, um produto das doutrinas imorais espalhadas pelos republicanos."

        Enfim, após todo o termo de execução da película, nos Estados Unidos tornou-se um sucesso imediato de bilheteria e críticas, contudo, na Europa o ambiente de recepção da obra foi de intensas criticas depreciativas. Como resultado, Darren Griffith imediatamente dá inicio a sua cartada de inteligência encontrada na realização do ano seguinte chamada justamente e concisamente “Intolerância”, cujo enredo entrelaça quatro histórias ocorridas no decorrer de toda a história da humanidade, da Babilônia a Jesus Cristo, e principalmente até os dias americanos contemporâneos da situação operaria, onde Griffith as utiliza para construir um filme de fortíssimo teor moral, onde para ele, a intolerância no decorrer do século impossibilitou a concretização perfeita do ideal do amor. 

Intolerância (1916): Uma contradição de Griffith?!
        A Despeito de todo o enredo das quatro historietas que se decorrem e se entrelaçam no decorrer de todo o filme, convergindo para o mesmo final, achamos conveniente aqui não delongar demais sobre cada uma delas. Cabe-nos apenas destacar o caráter fantástico do filme, e que justamente por isso, engendra toda a polêmica sobre o caráter dúbio de Griffith: Genio, porém, racista.

        A película “Intolerância” é belíssima, foi feita encima de um vasto investimento tomado por um orgulho e uma necessidade de resposta as criticas por parte de Griffith. O Resultado foi uma participação direta do mesmo, que a partir das cartelas de legendas durante o decorrer do filme, exibi sua poética e seu saber histórico para exprimir sua indignação em torno da Intolerância. 

É em suma, altamente contraditório, mas suas palavras nestas cartelas e toda a ligação das histórias que ligam a Babilônia traída por um sacerdote, a morte de Jesus, inclusive com inúmeras passagens da Bíblia, a Intolerância religiosa que levou ao conhecido Massacre de São Bartolomeu na França dita moderna, contudo toda a carga dramática fica a cargo principalmente da triste situação da injustiça de vida feita graças à ação das reformadoras das fabricas na história da “Queridinha” e de seu marido que quase perde a vida ao fim.

        Os quadros do filme são perfeitos, as cenas de guerra na Babilônia são impressionantes para os investimentos da época, e principalmente a capacidade de ligação entre as histórias e a poética desenvolvida por Griffith nos deixa extasiados, e cada vez mais confusos.

        Sua Metáfora principal está na ligação das histórias no decorrer do filme, a partir da passagem da “Mãe que balança o berço da Humanidade”, algo que se assemelha a uma simples alusão de que a humanidade ainda remonta a um bebê que precisa amadurecer para ser algum dia feliz, ultrapassando esses entraves da “Intolerância” para atingir esse fim.

        Contudo, nas quatro histórias que se seguem, não há um só negro, ou evidencia de intolerância contra eles. Há todo o tipo de intolerância: religiosa, moral e até de prazeres. Mas não há intolerância racial ou étnica. Seria então somente um debate sobre a intolerância em relação ao mundo ariano eugenista norte - americano?


Conclusão



        Assim encerramos este breve artigo. Não nos foi dada a intenção de defender este ou aquele cineasta, muito menos sortir de elogios as suas películas, mas a partir da frutífera relação Cinema – História pareceu ser oportuna a oportunidade de entender os referidos filmes a partir de seu contexto histórico nos quais surtiram como “artefatos culturais” que nos foram deixados, como espelhos dos pensamentos de outrora, nos trazendo a tona, idéias, preconceitos e conflitos que refletiam as Ideologias de uma época, que podem assim ser evidenciadas através de tais obras.  O Racismo como parte integrante de forma política e cientifica – eugenia na ciência e nas políticas de estado mundiais – se apresenta assim como um fenômeno marcante àquela época, mas que nos faz refletir ainda hoje, de que forma o racismo e o preconceito continuam a se expressar, com novas mascaras, mais veladas, mais hipócritas. Sobre isto, é o que tentaremos refletir na próxima postagem.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Pequena vendedora de fósforos


            Nessa nossa correria cotidiana, onde pululam estudos, trabalho, e toda uma gama de obrigações possíveis, se torna até difícil encontrar uma brecha no tempo – ótimo seria possuir a faculdade mágica de pará-lo de acordo com a nossa vontade – para respirarmos um pouco mais de nossos hobbys que acabam esquecidos, preteridos, relegados diante disso tudo. 
          Meu maior hobby é a História. Isso é fato. Junto com ela, vem o Cinema. Para aqueles que porventura se encontrem nessa situação de escassez de tempo, uma possibilidade está justamente em recorrer aos chamados Curtas – Metragens.
         Obviamente que não faço menção a estes apenas como subsídios alternativos na ausência do tempo, pelo contrário, apenas reforço suas qualidades diante dessa conjuntura. Enfim, os curtas que podem ser tidos até como pílulas cinematográficas – muitas vezes mais significativas e com dose de Arte Total do que obras com temporalidade comum do Cinema – acabaram me aparecendo como o comprimido diário da minha inseparável relação Cinema – História.
               É daí que num desses dias de correria, entre a leitura de obras, entre as idas para o estágio, feituras de resenhas para as disciplinas, que num intervalo para almoço/ respirar, acabei por encontrar um curta-metragem, uma animação, com apenas sete minutos de extensão.  Inicialmente, o próprio titulo já me chamou a atenção: “A Pequena vendedora de fósforos.” Mais ainda quando eu percebi que junto ao pôster do curta, havia a indicação que ele havia concorrido ao Oscar de melhor curta no ano de 2007, quando fora produzido. Mas não havia ganhado. Mais um motivo para vê-lo.

Poster de divulgação de " A Pequena vendedora de fósforos"



           Consegui baixá-lo e procurei assisti-lo com total concentração diante da efemeridade de sua sustância, de seus sete minutos. O Resultado produzido é que temos quase 420 segundos da mais pura dramaticidade e da mais bela pureza narrativa. Uma estória contada evidentemente triste. Contudo, real. Doce e ao mesmo tempo triste. Reflexiva acima de tudo. Histórica porque se baseou em um conto revelador da natureza de um tempo especifico da história de nossa humanidade.
         Sem mais rodeios, o curta “A Pequena vendedora de Fósforos”, foi baseada no conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805 – 1875), mundialmente conhecido por seus contos aparentemente infantis, mas que em verdade, possuem no seu sentido latente, uma carga puramente histórica, que ultrapassa a típica doçura e leveza das historinhas infantis. 

H.C. Andersen: Um olhar aguçado ao seu tempo.
Aliás, quase como todas as histórias de conto de fadas. Grande parte delas, como João e Maria, ou originalmente Hansel e Gretel, um conto de tradição oral, coletado pelos reconhecidos Irmãos Grimm, a qual narra a triste história de um casal de irmãos, filho de um pobre lenhador, que acaba por abandoná-los na floresta por não ter condições de criá-los, entregando-os então as agruras da pobreza, da miséria. Estes então levam consigo pedaços de pão, que procuram soltar no meio do caminho, para marcar o caminho de casa, mas os pombos comem suas marcas deixadas. 
   Enfim, é uma história já conhecida e próxima de nossa realidade infantil. Na versão atual, temos que o casal de crianças conseguiu retornar aos braços do pai. Um final feliz. Mas não o que ocorre, conta-se, na sua versão original. Nesta, o casal de irmãos, ao matarem a bruxa, esquartejam-na e a comem devido a sua fome. Ademais, a história original estaria diretamente ligada a momentos conturbados da Idade Média, principalmente quando a fome estaria assolando as populações camponesas. O próprio cenário da floresta, que para o homem medieval, possuía um sentido mágico, assustador, onde residia o pecado, as bruxas, os loucos, os eremitas, e toda ordem de elementos do desconhecido, ajuda a evidenciar isso tudo.

Hansel e Gretel: A miséria infantil como pano de fundo

         Enfim, diferentemente de João e Maria, Hansel e Gretel, a história da nossa pequena vendedora de fósforos não foi atualizada, não teve seus meandros mudados, mantivera sua estrutura original.  Seu contexto histórico é o século XIX. Sua casa é a “Santa Rússia Imperial Czarista”. Sua história se passa provavelmente entre os anos de 1875 a 1890, período em que aquele grande país, um “gigante de pés de barro” deixava evidenciar toda a sua rede de contrastes. 
           O Historiador Daniel Aarão Filho deixa-nos tudo isto claro. A Rússia àquela época era ainda formada por uma grande composição rural – 80%– uma massa que vivia em meio ao atraso produtivo, com arados de madeira e mãos nuas para produzir. Em contrapartida, o eixo urbano passava por intensas transformações, devido a formação de bolsões tecnológicos, que na medida em que fomentava a uma melhoria de vida para um pequeno grupo de privilegiados nas cidades, só ajudava a demonstrar como era fato o grande traço de contrastes, de desigualdades entre os segmentos sociais da Rússia Czarista.
Mormente todo este quadro, entre 1860 até 1914, como cita Aarão Filho, o crescimento demográfico russo foi fulgurante. Uma média de 2,4 milhões por ano. Uma massa que rezava pelo bem estar do “paizinho”, visto como o representante nato de Deus na Terra. Rezava-se para que este predestinado lhes diminuísse as carências de vida; rogava-lhes por melhorias, por cobertas para as noites frias de São Petersburgo. Quem mais lhe rogava, eram justamente os mujiques – estes camponeses- ora no campo, ora na cidade, após um êxodo forte que os fazia agora parte de um excedente sem rumo e sem destino na capital econômica e política russa. Conseguindo emprego nas novas fabricas ótimo. Não obtendo este recurso, talvez esperar o encargo do destino.

O Czar no centro: Na ordodoxia russa, ele era um representante de Deus na Terra.

         É deste plano de fundo histórico que nasce a nossa doce historinha.
         Somos levados ao drama da pequena vendedora de fósforos. Uma doce garotinha de provavelmente seus oito anos que sobrevive nas frias ruas de São Petersburgo, tentando ganhar sua vida, vendendo palitos de fósforo para os passantes. O Fósforo era o fogo para conter o frio. Mas todos aqueles que passavam não davam conta de sua existência. Era um alguém no meio daquela multidão de gente. Alguém que não deveria ser visto. Aliás, ninguém a via. Todos estavam cegos diante de sua existência. Menos o policial que a impede de subir a um poste de luz, quando esta tentava se tornar mais alta diante dos olhos daquelas pessoas, e assim tentar aumentar sua chance de êxito nas vendas.
         Não vende nada. Seus pés estão frios. Ela está sozinha. Sozinha com seus raros palitos em sua pequena caixinha. Dos seus pés frios, somente meias furadas e nenhum sapato. No seu rosto, a desilusão da vida e a tristeza da miséria. Ninguém sabe o seu passado. Quem é essa menina? Qual seu nome? Porventura teria ela nome? Maria? Sônia? Nomes naturalmente russos! Mas não sabemos. Seu nome era expressão de sua situação. Talvez codinome criança pobre nas ruas, talvez codinome povo em geral.

A pequena vendedora de fósforos: Nas ruas frias e congestionadas, ninguém vê-la. Ou finge-se não ver.

         Enfim, na desilusão da fria noite russa, ela visualiza os antagonismos da vida. Vê crianças como ela, no colo dos seus pais, andando de boas charretes, comprando presentes e sorrindo com seus pais, naquela noite fria de Natal ou de Ano novo. Que seja qual for a festividade. Para ela nada mudava mesmo. Sua situação era única todos os dias. Fósforos, e desilusões. 

Talvez do alto, ela conseguia ser percebida!

         Caindo a noite, não tem onde deitar. Prefere então manter-se acolhida em mais uma das vielas daquela assombrosa cidade, retrato vivo do janus russo, moeda com face de deus romano que representa o passado e o futuro na mesma instância, mas que não deixa esconder as mesmíssimas contradições e opressões da vida.
         Seu leito é o seu próprio corpo. Sua camisa mirrada. Tenta esconder o frio dos pés, mas é uma atitude inútil, na medida em que cobre uma parte, mas deixa nua outra parte do corpo. Para aplacar o frio, vai recorrer ao seu próprio meio de vida. Quem lhe salvará? Seus fósforos!
         Procura no primeiro palito, o furor da pálida chama para conter todo o seu frio – frio intenso, números negativos quem sabe, Rússia – também a sua fome contida. Com o ascender do fogo, ascendem-se também as suas esperanças, os seus sonhos. É a chama da vida que nela teme em não apagar! Na verdade porque apagaria, se mal acabou de ser aceso? É uma criança! Tem toda uma fogueira da vida pra manter acesa!
         No primeiro palito aceso, vê num velho forno afundado em meio a neve do chão, a realidade de um sonho; enxerga-se diante desse mesmo forno, uma lareira para o seu frio. Esquenta seus pés, suas mãos. Mas é tudo ilusão. Volta do seu transe. De sua utopia. O Palito apaga-se e com ela sua alegria, seu subterfúgio.
         Acende o segundo fósforo. Só lhe restam mais cinco fósforos. O Frio lhe maltrata. É necessário mais do que nunca, fugir. Aceso. Ah como a visão agora lhe agracia e lhe atormenta! É comida! Frango! Um frango gordo como nunca imaginaria ter em sua mesa. Em mãos ao menos, porque mesa é para quem tem casa. Nem isso hoje, ela porventura tem.

A Primeira Chama

         Acaba a sua ilusão mais uma vez, e o anuncio de sua catástase começa a aparecer. É o vício do fósforo. Acende mais um: É levada por cavalos e charretes como aqueles vistos naquela mesma noite! Parece tudo tão real diante de seus olhos! É levada então a uma casinha distante! Talvez numa floresta russa! Lá está uma velhinha, talvez sua mãe, talvez sua avó! Uma casinha e uma mulher tão longe, tão distante, só possível talvez em seu âmago mais profundo! Chegando lá, ela procura olhar pela janela gélida se há realmente alguém naquele sonho impossível. Bate na porta, a velhinha a atende, mas quando ia abraçá-lo, o sonho apagou. O Fósforo. E o peito dela ia queimando. Queimando de dor. Quero retornar ao meu sonho. Eu quero o paraíso agora. Meu Éden. Acende então de uma única vez, seus últimos três fósforos, procurando trazer de volta seu maior sonho, e mantê-lo vivo o mais tempo possível, sem contar que com essa apocalíptica medida, findara com todos os seus meios de sobrevivência. Pouco importa. O Fogo agora forte, a leva de volta àquela velhinha dos grandes braços abertos. É lá onde ela quer ficar: abraça, ama e chora!
         Ela é uma velhinha mãe – avô como todas as outras. É a sua mãe. É a sua avó. Prostra-se diante de uma grande arvore de Natal. Um de seus sonhos. Sua fé ainda é viva. Acende as velas da esperança de cada um dos estamentos daquela grande arvore, mas na ultima grande estrela, no cume da arvore, o fogo acaba definitivamente. Ela vê que diante de si, não tem mais do que as estrelas frias do céu, ofuscadas pelo cair maciço das neves.

O Grande sonho: A Arvore de Natal



         Ela então dorme. “Dorme para a eternidade”. A Mãe Rússia como que então aparece de seu sonho para levá-la. Levá-lo para o mundo da infinitude. Talvez a morte seja a solução melhor. Não há mais frio, não há mais fome. Numa das mais belas cenas que eu já vi na vida, a mãe Rússia leva sua essência, sua alma, para além daquelas paredes, e seu corpo frio, permanece ali, esquecido, morto, talvez na espera da neve que caia e lhe esconda da vista daqueles que em vida nunca a viram. Não fará diferença. Agora ela está com a mãe Rússia, a mãe a quem sempre confiara como alguém que lhe daria a paz, a comida, o manto, o abraço materno, o amor.

O Ultimo sono: Os palitos queimados junto aos pés descalços.

Vivera e sonhara com esta grande mãe Rússia. Essa grande utopia. Morrera com ela. Sem nome. Sem fósforos. Mas com a fé acesa. A Certeza: Assim como ela, outras tantas crianças morreram. Projetos de Gente. Com sonhos e desilusões.  A Fé e a Espera.

“Quando cai urna estrela, é que uma alma está voando para Deus”

         É realmente um belíssimo curta – animação. Simples, doce, triste, verdadeiramente real. Para aumentar a qualidade da obra, a sua trilha sonora é fantástica e fala por si só, já que o curta é praticamente mudo. A criança não fale, a sonoridade triste fala por ela. Emociona por ela.
         Tal grandeza de adaptação da obra literária para o curta não surpreende, quando percebemos que o diretor da animação é o aclamado Roger Allers, o mesmo que ganhara o Oscar com a maior animação de todos os tempos, na minha singela opinião, o Rei Leão, também um conto dito infantil, mas que o caráter existencial, revela muito mais do que uma mera historinha para criança, discutindo questões como amor, traição, regeneração, perda, recomeço, religiosidade e outras tantas temáticas.
         “A Pequena vendedora de fósforos” não ganhou o Oscar. O que obviamente não quer dizer nada. Aliás, como os curtas conseguem dizer tudo, ou quase tudo, com a rapidez de suas poucas imagens. 7 minutos. 7 minutos que conseguem abarcar um sentimento que muitas películas de 2 horas e meia não conseguem recriar.
         Enfim, estou encerrando aqui este comentário.  Termino ratificando como vale assistir este curta. Rápido, não será tempo perdido, muito pelo contrário. Veja e espalhe. Reflita. Estou postando logo abaixo o curta para que todos visualizem.


         Enfim, é só. Até +
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