terça-feira, 18 de maio de 2010

O Retorno de Martin Guerre.


Antes de abordar o filme e a sua temática envolvida, é necessário destacar a grande importância e as frutíferas contribuições da historiadora Natalie Zemon Davis para o campo da História.

Natalie Zemon Davis é uma renomada historiadora americana, com grande destaque no estudo da Era Moderna.

Enfim,no ano de 1982 acabou sendo convidada para participar e elaborar, a partir de seus estudos, um roteiro para a filmagem do filme " O Retorno de Martin Guerre". Fato é que seu roteiro, suas analises e interpretações acabaram tornando-se, além do filme, uma obra de alcance e sucesso mundial, cuja analise da história tentarei prosseguir adiante.

Comecemos:

O Romance histórico “O Retorno de Martin Guerre”, escrito por Natalie Zemon Davies é resultado de uma tentativa de contar fidedignamente este caso histórico surpreendente e fora dos padrões, tanto é que chegou até os nossos dias com a mesma surpresa que o tornara conhecido mundialmente.

Inicialmente, a escritora nos informa que o trabalho da escrita do livro foi realizado utilizando-se as informações disponíveis sobre o caso, principalmente relatados no “Arrest Memorable” do jurista Jean de Coras e do também magistrado Le Suer. Porem, como a própria afirma, há pedaços da história que não podem ser constatados, logo, a própria nos deixa claro que em alguns incertos deixaria a sua imaginação fluir, procurando respostas apropriadas ou possíveis de acordo com a personalidade de cada personagem.

O Trabalho é assaz importante até porque a literatura camponesa medieval (e princípios de era moderna) não é facilmente retratada, haja vista que a grande maioria da população camponesa era desprovida do poder da escrita, e assim, conseqüentemente do poder de deixar a sua marca na história. Acontece que a maioria dos relatos sobre os camponeses são marcados nas chamadas “obras de comedia”, sempre certos estereótipos onde se enxerga uma lição de moral envolvendo coisas engraçadas e sublimes, porem a maioria sempre com final feliz.

Poucos são os casos onde o proprio camponês deixa a sua biografia escrita. Se nos deixa, é sinal que já não é tão camponês, e que já ascendera um pouco em sua vida.
Contudo, a principal fonte de informações acerca da vida camponesa, vai se dar por um meio não muito feliz: Os documentos judiciários. São neles, onde os escritores vão buscar relatos de casos da época, para procurar encontrar a profundidade do período. Temos aqui então nesta obra, um caso típico desta literatura. Assim, tanto "O Retorno de Martin Guerre", como também a obra “O queijo e os vermes” são frutos de trabalhos intensivos sobre tais anais da justiça.

Porventura quem ainda não leu a obra, não siga adianta na leitura desta postagem, haja vista que contarei todo o processo da história, mas caso contrario, sugiro a leitura de forma que possibilite o interesse da leitura posterior, como também o gosto pelo filme.

O livro narra à história do camponês Martin Guerre. Nascido no Hendaye na região basca, acabou mudando-se muito cedo com seus pais para a região de Artigat no Languedoc, região francesa. Sua família basca possuía uma forte personalidade, típica do local. Chegando ao Artigat, a família se instalou e comprou terrenos onde foram desenvolvidas atividades da agricultura e a principal fonte da família que eram as olarias.

Martin tivera uma infância atribulada. Não era fácil ser basco e seguir a forte e rígida formação de sua família naquele ambiente.Certo dia um fato iria mudar sua vida. Seus pais, seguindo a tradição, arrumaram-lhe uma esposa de “ boa família” para que as regiões de ambas as famílias fossem unidas. Então, Martin foi "convidado" a casar-se com Bertrande de Rolls. Eram muito novos. Martin tinha basicamente 14 anos, e ela era ainda mais nova. Casados, Martin não conseguia se adaptar a vida, e acima de tudo, não conseguia ter relações com a sua esposa, enfim foi dado como impotente.

Foram 8 anos sem nenhuma relação com a esposa,sofrendo grandes martírios dentro da comunidade em que vivia. Sua família acreditara que tivesse sido vitima de um feitiço.Assim sendo, uma velha feiticeira tratou de fazer um ritual sobre ele, e assim, conseguiram ter sua primeira relação, que acabou engravidando a esposa,dando origem ao filho chamado Sanxi Guerre. Porem mesmo assim Martin não gostava daquela vida de trabalho no campo e nas olarias. Era um jovem, queria conhecer o mundo. Seu pai nunca permitira que ele se aventurasse. Guiado por seus impulsos, acabou roubando uma saca de grãos o que forçou a seu pai a repreende-lo severamente pois segundo a tradição basca, o roubo era algo inadmissível. Assim, conseguira um álibi para sua fuga. E fugiu.

Foi para a Espanha, onde lutara pelas forças espanholas contra a França, lugar de onde vira. La conseguiu um emprego depois de servir ao exercito, na casa de um cardeal, também em um mosteiro, onde fortalecera a sua fé católica. Porem tragicamente acabara sendo ferido, e tivera uma perna amputada, onde colocaram-lhe em substituição uma perna de pau.

Em Artigat, Bertrand de Rolls seguia a sua vida esperando a volta de Martin Guerre. Mantinha a pureza e a esperança que um dia ele pudesse retornar. Segundo os direitos canônicos, ela não poderia se casar novamente, teria que esperar até que o marido retornasse. Caso desejasse se separar, podia tentar provar a sua morte, o que poderia lhe garantir a separação, mas preferiu esperar.

Chegamos então a personagem mais significativa de toda a história. Personagem que desperta as maiores duvidas e incertezas até os nossos dias. Um homem chamado Arnaud de Tihl, ou vulgarmente conhecido como Pancette.Dado a boa vida, as bebidas e a luxaria, vivia perigando entre os lugares. Era um gênio da persuasão e da memória. O melhor ator e vigarista que se poderia ter no momento. Certa vez estava ele vagando quando dois soldados o indagaram se era ele Martin Guerre,aquele camponês que fugira,respondera então que sim, resolvendo então usurpar a vida daquele ser.

De fato eram imensamente parecidos. Percebendo então a grande chance, partira Pancette.

Aqui devemos entender que não se pode afirmar com certeza, se Pancette, antes de entrar em contato com estes dois soldados, tivera algum contato real com Martin Guerre durante a guerra,haja vista que Pancette havia lutado pelo exercito francês, mas assim vemos que ambos lutaram então por exércitos opostos.Mas caso tenham tido, Martin poderia ter contado tudo sobre sua vida, e este experto Pancette acabara interessado e impulsionado a trair esta amizade. Mas não é uma certeza este encontro. Também Pancette ficou sabendo de coisas da região através dos relatos dos dois soldados que o confundiram com Martin Guerre. De fato, esta questão é bastante polêmica no decorrer de toda a questão : Pansette sabia tanto, que suspeitavam até, durante o seu processo, que fosse demoníaco, o diabo lhe informava tudo.

Partira Pancette pra a sua nova vida. Chegou em uma hotelaria em Artigat onde o Reconheceram prontamente como Martin. Foi recebido com muito amor em Artigat, sem que ninguém suspeitasse de nada.Ao primeiro encontro com Bertrand, acabara se apaixonando.Vivera bem com toda a família por quase 3 anos sem que nada lhe perturbasse.

A grande e essencial questão polêmica centra-se na personagem Bertrande de Rolls: Sabia ela que aquele era um farsante ou não?!. Tornou-se cúmplice dele?!.
Alguns estudiosos da época afirmam que ela não poderia saber pois " o sexo feminino é frágil e se deixa seduzir". Talvez, na minha opinião, sabendo ela que estava feliz com este, e aquele outro a abandonara, resolvera então torna-se cúmplice para a sua própria felicidade.

Até que um dia Pancette pisou no proprio pé. Resolvera pedir ao tio Pierre Guerre as contas de suas propriedades que ficaram em seu nome. O Tio que talvez ate aquele momento estranhasse o tal sobrinho, mas que nunca agira pois a vida era calma, sentiu-se ofendido. Passou então a recordar-se então de tudo de estranho naquele novo ser: O fato deste regresso Martin desejar vender algumas terras da família, fato inadmissível na cultura basca, pois se passava de geração em geração, entre outros tantos fatos que lhes pareciam inexplicáveis para alguém que tivesse origem basca.

Assim instalou-se o conflito. Pierre Guerre convencera a boa parte da aldeia que aquele homem era um impostor, que queria usurpar a propriedade da família e também maculá-la. Pancette se defendia dizendo que era uma calunia do velho tio, pois este não queria lhe devolver o que lhe era de direito. Então, foram parar na Justiça.

No âmbito familiar, Bertrande ficara do lado do marido. As irmãs de Martin também apoiavam ao suposto Martin.Na aldeia, estava meio a meio, talvez até acreditassem mais em Pancette que no senhor Pierre Guerre.

O grande e renomado Jurista Jean de Coras partira para Artigat onde julgara todo o processo. Convencera-se então que o falso Martin era inocente. Durante este processo primário, as principais acusações eram:

- Pierre Guerre afirmava que aquele era um impostor. Afirmava que o sapateiro da comunidade podia provar a farsa, haja vista que o pé daquele Martin era menor que o do verdadeiro Martin. Também haviam os dois soldados que afirmavam que aquele era um vigarista chamado Pancette.

- Enquanto isso, Pancette se defendia com grande eloqüência, provando a todos com relatos e memórias que era o verdadeiro Martin Guerre.

No fim, Foi absorvido.

Contudo, inconformado, Pierre Guerre invadira a casa de falso Martin mostrando-lhe um documento na qual se via que ele seria julgado no Supremo Tribunal de Toulouse. E desta vez a situação era absolutamente terrível, pois a própria esposa teria contribuído, ao ter assinando também o documento de acusação. Porem sabia ele, que esta assinara forçada, por pressão do tio.

Seguiu preso então para Toulouse. Lá começou os julgamentos da mesma maneira. Conseguia a cada dia com suas lembranças, provar aos juristas, e em especial Jean de Coras, que era inocente. Pierre Guerre entrava assim em apuros, e podia ser processado e preso por calunia. Os julgamentos se seguiam, e a inocência seria decretada, até que no fim de toda a ação, aparecera no Tribunal um homem, andando calmamente e lentamente, com sua perna de pau, exigindo o direito a fala.

Era o Retorno do verdadeiro Martin Guerre.

Pansette ficara inicialmente assustado, mas se controlara. E com grande eloqüência conseguia ate dialogar melhor com os juristas, provando com lembranças e memórias, com mais perfeição que o proprio Martin,acusando-o de ser um farsante a serviço de seu tio.

Contudo a estratégia de Pancette acabaria findando ao fracasso.Em uma cartada final, os familiares, inclusive Bertrande, reconheceram aquele homem da perna de pau, como o verdadeiro Martin que havia ido embora anos antes.

Pansette, então sem alternativas, percebeu que o jogo estava acabado,admitindo então a sua real identidade: Arnaud de Tihl.

Foi condenado a morrer na forca por ordem de Jean de Coras para servir como exemplo. Seus despojos foram queimados. Mas antes de morrer passou por um suplicio de perdão. Caminhou pedindo perdão a todos os que conhecera naquela comunidade,até que a frente da casa dos Guerre, onde foi montado o palco de sua morte, foi enforcado e queimado.

Acabara assim a história de usurpação do experto Arnaud de Tihl.

Algumas considerações interessantes, e todavia não únicas, podem ser explicitadas sobre o contexto da obra, como também retratadas no filme:

- Em todo o decorrer do livro subentende-se uma intenção da autora em demonstrar como o Protestantismo começava a se fortalecer na Europa, e não somente nos meios mais abastados como também possivelmente nas camadas camponesas.
Em vários momentos do livro, a autora afirma da posição religiosa controversa de Jean de Coras. Era católico mas tornara-se protestante. Talvez Bertrande de Rolls e Arnaud de Tihl também tivessem se convertido ao Protestantismo.
O verdadeiro Martin Guerre contudo era muito católico, devido ao convívio intenso com cardeis e em mosteiros na Espanha.

Assim torna-se subentendido um enlace subliminar e característico do período em destaque: O PROTESTANTISMO REFORMANTE X CATOLICISMO CONSERVADOR.

- A autora expõe que pelos transmites da Reforma Protestante talvez a história e o fim de Pancette teriam tido um fim diferente. Durante o proprio julgamento foi afirmado que Martin tinha a sua grande culpa na história ao fugir e abandonar Bertrande e sua família.
Bertrande de acordo com tais leis reformantes poderia obter um novo casamento, sendo provada a ausência daquele. Também afirma Jean de Coras em seus registros, que talvez aquele casamento juvenil nunca teria sido efetuado devido a extrema juventude de ambos. Assim eram as leis rígidas do casamento no Catolicismo, contra as leis mais flexíveis do Protestantismo.

- Menção ao fim trágico do controverso Jean de Coras, que descoberto protestante, acabara enforcado e morto durante o massacre de São Bartolomeu, onde inúmeros protestantes acabaram massacrados. Este mesmo Jean de Coras, havia se identificado bastante com Pancette. Talvez por saber que aquele também era um protestante, e mais ainda por sua inteligência e eloqüência lingüística e retórica. De fato, tinham algumas coisas em comum.

Para finalizar, de fato tanto o filme como o livro se correspondem. Uma serviu de roteiro para a outra, e mostram uma surpreendente história. Um relato de um caso cheio de duvidas, suposições, interpretações e de um sucesso que chega até os nossos dias.

Seria Bertrande de Rolls uma ingênua mulher? Ou era muito experta e sabia desde o principio? Qual a culpa do verdadeiro Martin Guerre? Pancette teria se redimido da vida errante ao se apaixonar por Bertrande e assumir aquela vida de alguém que outrora havia fugido?

Enfim, muitas dúvidas e posicionamentos surgem. E talvez seja este o grande mérito tanto da obra como de toda a história: A infinidade de dúvidas,posicionamentos e a certeza que nesta história, não há uma verdade absoluta.

Um Conselho ? A leitura do Livro e um olhar direcionado ao Filme.

Nesta obra, fica muito claro como a História, a Literatura e o Cinema, podem dialogar em conjunto, apresentando então o Cinema, em confronto com o conhecimento historiografico, como um elo possivel e muito importante para o campo da História.

Ass: Rafael Costa Prata

Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.


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