sábado, 14 de julho de 2012

Navigator: Uma fantasia medieval - moderna "na pista de nossos medos"


"O Grito" - Edward Munch, 1983.

        O Medo, a incerteza e a inquietação frente ao que é desconhecido e assolador sempre será uma característica intrínseca residente no âmago mais profundo natureza humana.  Caractere universal que, ao menos neste ponto, aproxima os homens das mais diferentes sociedades e culturas, localizados em qualquer período histórico, o “Medo” é um estado emocional que possibilita profundamente, o reencontro do homem moderno com as suas fragilidades, com seus anseios e fraquezas infantis, muitas vezes sublimadas pela selvageria da modernidade.
         Ao que parece, em outros estágios da trajetória humana, dá-se a impressão de que foi possível manifestar-se com mais liberdade este medo. A diferença neste sentido é que estes manifestavam seus medos, enquanto que o homem moderno, envolto e escondido na sua ilusória carapuça de segurança, acaba por se esconder por detrás de inúmeros refúgios, como a crença numa ciência que irá resolver todos os problemas da saúde, afastando-o cada vez mais a morte, um medo tão forte nos dias atuais.
         A Idade Média, que tem sido apontada historicamente, e em censo comum, como um período tenebroso, de trevas, escuridão e ignorância, nesse sentido nos oferece um raio – x proveitoso sobre os nossos medos; Medos que permanecem e que podem ser postos em comparação com os temores modernos.

         O Medievalista Georges Duby em sua belíssima obra “Ano 1000, Ano 2000 – Na pista dos nossos medos” consegue com rara sensibilidade, promover esta questão. Analisando as estruturas sociais, culturais e mentais da sociedade medieval, Duby compara os temores de ontem com a tipologia do medo do ano 2000, demonstrando como estamos mais próximos do que pensamos daquela sociedade de outrora.
         Já no prefacio da obra, Duby deixa claro que: “As pessoas que viviam há oito ou dez séculos não eram nem mais menos inquietas do que nós” (DUBY, 1998,p.9).  Para ele, o papel da História e do Historiador seria justamente esta: resgatar do passado, dos escombros da história, aquilo que aproxima no plano mental, os homens de ontem aos de hoje. Só assim será possível “afrontar com mais lucidez os perigos de hoje” (Idem).
         O Passado, ao mesmo tempo em que ensina e ajuda a não repetir os mesmos erros e mazelas, noutro sentido, também reconforta, ao aproximar homens aparentemente tão diferentes e diversos, no que tange aos seus medos e a forma como lidaram com tais, a partir, principalmente, do fio condutor da fé, da manifestação com o divino, em outras palavras, a lide com a religião.
 
         Neste sentido, uma obra cinematográfica que empreende uma alegoria profunda sobre estes medos, temores que afligem a humanidade seja qual for à época, é a película “Navigator – uma odisseia medieval”, do ano de 1988, dirigida por Vincent Ward.
         Em meio ao furor ocasionado pela infestação da AIDS no decorrer dos anos 1980, esta película empreende a uma belíssima metáfora sobre os medos humanos e a procura iminente por respostas confortantes seja qual for à datação em que estejamos localizados.
         Baseada em um pano de fundo medieval, somos levados a uma pequena comunidade localizada na Cumbria, Inglaterra, no ano de Nosso Senhor - 1348, quando a Peste Negra deixa de forma bastante substancial, um grande número de vítimas em solo europeu, espalhando o caos, o terror e a incerteza frente ao dia de amanhã. Esse é o clima de Navigator: a constante manifestação do temor frente à morte e a procura, através da religiosidade, de manifestações divinas que aplaquem o poder devastador da Peste Negra. 

         Somos levados então ao mundo do jovem garotinho Griffin, que passa a sonhar constantemente com a construção de uma grande Catedral em homenagem a Deus, que passa a ser vista pelos aldeões, como uma mensagem de salvação, a solução para interromper a peste que se espalhava naquele momento. Para eles, a peste era vista como uma cólera divina, um flagelo de Deus enviado graças à insatisfação daquele frente aos desvios mundanos. Na sociedade medieval, as respostas para todos os segmentos da vida, perpassavam uma noção teológica. Os Mineiros cantam efusivamente "Os homens, acuados, viraram animais...”.

         Através dos sonhos teológicos do pequeno Griffin, os mineiros partem em uma odisseia temporal em busca de um “fosso na história”, uma viagem no tempo, que acaba levando-os até os anos 1980. É nesse ponto que o filme inova. É tudo muito simbólico, filosófico, existencial. Não há clichês, estereótipos depreciativos, preconceitos. Aproxima-se a noção de vida medieval – e seus medos – aos temores modernos do contemporâneo anos 1980.


Esta Cena não parece o Quadro "O Grito" de Edward Munch?

         Uma das cenas que reflete com grande sensibilidade essa aproximação se dá quando um dos mineiros passa por uma vitrine de lojas de TV, e no noticiário, está sendo informado sobre o caos e o temor ocasionado pela rápida viralização da AIDS em todo o mundo. A Peste Negra de ontem é o espelho da AIDS dos anos 1980, ainda sem resposta, sem os eficientes coquetéis criados posteriormente que ajudariam a aplacar a velocidade da doença. Naquele momento, não há respostas.

A Morte chegava através da Peste Negra

         No ano de nosso Senhor, 1348, sem respostas, como Duby explica, se procurou culpar os judeus e os heréticos pela manifestação da peste negra. Nos anos 1980, foram os homossexuais, os hippies, os africanos, etc, os apontados constantemente como culpados. É o medo do “outro” que permanece.
         Através de uma fantasia medieval – moderna, segue-se uma peregrinação em uma Londres oitentista, onde os mineiros medievais juntam-se a um grupo de pessoas que passam a auxilia-los em seus intentos, ainda que não consigam compreender profundamente o que está se passando. Mas é então a fé, o fio condutor de toda a película, algo que parece ligar aqueles homens do outrora século XIV aos do século XX.
         
        Enfim, esta desconhecida película faz um trabalho deveras primoroso em todos os seus aspectos: a fotografia e a trilha sonora, feita sob um verdadeiro trabalho de pesquisa medieval, são louváveis. O Contraste entre uma Idade Média em “preto e branco” e os anos 1980 em tons coloridos também é um ponto de destaque no filme.
         O que deve ser apontado como a principal qualidade do mesmo é esta dita reflexão empreendida entre os medos de ontem e o de hoje, a aproximação entre aqueles e estes. Mineiros, ferreiros e moleiros são mais próximos de burocratas, tecnólogos, bartenders do que podemos imaginar. O que nos aproxima em todos os sentidos é o fato de sermos todos humanos, carentes de resposta e insatisfeitos com tudo aquilo que nos é inexplicável e inaceitável.

Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe

Referências Bibliográficas:

DUBY, George. Ano 1000, ano 2000: na pista dos nossos medos. São Paulo, Unesp, 1998.

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