“Alguém devia ter caluniado Josef K, visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal”.
(Franz Kafka - “O Processo”, 1920.)
Introdução
É com esta enigmática afirmação
que o escritor tcheco Franz Kafka inicia sua mais profunda obra chamada “O Processo”. Escrita em 1920, em linhas
gerais, a obra nos conta a história e o triste destino de um sujeito comum
chamado Josef K, que repentinamente é acordado às 6 da manhã por forças
policiais, sendo acusado por um crime que nunca havia imaginado ter cometido.
Em seu leito, atordoado e
surpreendido, Josef K, ouvia das vozes brutas daqueles robustos homens de
preto, sua sentença: “Não pode sair; o
senhor está preso”. Estava preso por
um crime que não havia cometido, e de pior maneira, não sabia do que estava
sendo acusado, de forma que o seu maior crime, como veremos adiante, foi ter
existido durante aquele contexto histórico especifico.
Franz Kafka, que foi um judeu
nascido em Praga, parecia com aquela obra aterrorizante ter anunciado os
fúnebres destinos de seus familiares e de sua nação, quando em 1920, parecia
narrar o triste fim dos judeus, ciganos, negros, e outros grupos, nos campos de
concentração nazistas poucas décadas depois, condenados e executados sob
acusação primaria simplesmente por terem nascidos da forma como haviam
nascidos, ou seja, foram mortos pelo simples fato de terem existido.
Não obstante, pode parecer muito
estranho retomar a uma aclamada obra da literatura mundial escrita nos anos
1920, possivelmente anunciadora destes eventos apocalípticos e catastróficos,
quando aqui desejamos ensejar um breve comentário sobre uma realidade e
contexto histórico que aparentemente se apresenta divergente a estes fatos: A
Caça as Bruxas, ou aos comunistas, durante os anos 1950 nos Estados Unidos,
levada a cabo pela política do Macarthismo.
Contudo, por mais estranha que
esta analogia possa aparentar ser, suas similitudes, como veremos adiante, são
bastante visíveis e correlatas, haja vista que em ambas as situações, ocorre a
criação pragmática e “necessária” de um inimigo comum, que será devidamente
caçado e aniquilado sob acusação e pena de algo que não cometera, e muito pior,
sem a permissão de defender-se da acusação, sendo queimado e exorcizado pela
histeria geral que habitava tais momentos, na santa fogueira da acusação, do medo do outro, que é julgado antes de ser conhecido. Uma Histéria que era geral, atingindo todos os setores da sociedade: do chefe de sindicato industrial ao cineasta.
Joseph
McCarthy: “Estamos
hoje a travar a batalha final entre o ateísmo comunista e a cristandade. As
fichas estão na mesa – vamos derrotá-los”.
Esta
citação proferida pelo senador republicano Joe McCarthy em conferência dada em
Virginia no ano de 1950, simboliza com perfeição o apogeu de toda a histeria
coletiva iniciada pelo mesmo, e que não menos era o espírito da época, contra
uma possível “febre comunista” que
ameaçava atingir os lares americanos daquela época.
De certo, o pensamento do senador Joe
McCarthy apenas figura como a representação mais funcional deste pensamento que
corria a época, haja vista que este conseguira alcançar representação política
para assim então vociferar este medo. Fato é que terminada a Segunda Guerra
Mundial, o mundo encontrou-se diante de uma guerra dicotômica entre os Estados
Unidos, recém-saídos vitoriosos desta guerra, cujo capitalismo também se
apresentava em intermitente expansão por meio do Plano Marshal, para com os
soviéticos, ou seja, a União soviética, também fortalecida e cada vez mais
disposta a encarar os Estados Unidos frente a frente nesta corrida
armamentista, política, econômica, e de fronteiras, que ficou conhecida na
história e/ou no imaginário político-bélico como “Guerra Fria”.
Resumidamente, é neste cenário complicado do
pós- guerra e de completa alienação psicológica onde o outro podia sempre ser
visto como o inimigo real, que a política de Joe McCarthy vai encontrar campo
propicio para objetivar sua perseguição desenfreada a supostos comunistas
dentro da esfera pública americana, seja dentre os políticos até os meios
midiáticos em geral, entre eles jornalistas, e cineastas, estes últimos, os que
nos interessam aqui, quando tomaremos em analise, o caso especial do grande
cineasta americano Orson Welles, acusado por este mesmo McCarthy de estar
trazendo os ventos do Comunismo soviético para os Estados Unidos, ameaçando
assim o bem estar social dos americanos. Orson Welles, de grande cineasta,
passava a ser Persona non grata dentro
do imaginário yankee da época, impulsionado é claro por uma construção
pragmática feita com grande eficácia por esta ala amedrontada macarthista, que
procurava cada vez mais recriar uma culpabilidade nesta como forma de
justificar suas ações.
Joe McCarthy: Prendam-nos! |
O
Perfil psicológico era de vivência de extrema suspeita, sendo todos aparentes
sujeitos de suspeita. A Delação era então um artificio muito comum neste
expediente, sendo acusados desde vizinhos mais acanhados, até grandes
personalidades aclamadas pelo público em geral. A busca por uma verdade que só
era vista por aqueles que a criavam, fazia, segundo as palavras de Robert
Darnton, a enxergar e encontrar práticas de feitiçaria muito mais visíveis pelo
olhar do inquisidor que já se dirigia a este fim do que propriamente a essência
do fato.
O Inquisidor
naquele caso, o século XV ao XVII, ao se reportar ao ato suspeito de Bruxaria,
já determinava por meio do pragmatismo aquele fim, ou seja, o crime era pré-determinado
e consolado por sua visão; já em nosso tempo, o século XX, o Inquisidor
Macarthista também pragmático antes de julgar o acusado já o entendia como
culpado, residindo no seu olhar um crime que em muitos casos somente ele
conseguia enxergar. Em ambos os casos, nascem inúmeros Josef K, utilizado no
inicio desta resenha, personagem injustiçado de Kafka, acusado e morto por um
pragmatismo desconhecido, e sendo assim, ambos os fatos ainda que em contextos
diferenciados, apresentam inúmeras semelhanças, dado então a apelidar o
fenômeno de Caça as Bruxas as perseguições aos ditos suspeitos comunistas, por
seu parentesco de expediente e, sobretudo de condenação sumaria, sem provas e
sem culpabilidade.
Orson
Welles: Codinome "K" na lista negra dos comunistas.
Nascido em 1915 no condado de Wiscosin, Orson
Welles desde muito cedo já demonstrara seus dotes artísticos, quando em um
evento curiosíssimo e que lhe dera toda a sua fama quando jovem, narrara em uma
radio local, uma suposta invasão alienígena aquela localidade, com grande
eloquência de narrativa, dramaticidade na voz, baseando-se para isso na obra
literária “A Guerra dos Mundos”, do
escritor britânico George Wells.
Este curioso fato ocorreu no ano de 1938, quando o
jovem Welles tinha apenas 23 anos, e causou enorme rebuliço e pânico naquela
pequena e pacata cidade do interior. Ademais, o interessante a observar é que
inconscientemente Welles já previa como este pragmatismo, como a criação de um
inimigo invisível causava desordem social e alienação frente aos americanos.
Ainda que os cidadãos daquela cidade não vissem alienígena algum, houve uma
comoção popular onde portas eram fechadas, pessoas escondiam-se nos porões, e
acreditavam piamente que aquele inimigo era real. Se não era visível para ele,
para outro podia ser. Fato é que ele existia, era necessário esconder-se ou
combate-lo.
O Jovem Welles "enganou" o país inteiro. |
No outro dia deste ocorrido, a população assustada
queria saber quem tinha sido o sujeito traquinas inventor deste rebuliço na
radio local. Daí em diante, Orson Welles ficaria famoso por todo o seu talento
dramático e artístico, destacando-se como um fantástico diretor e ator no
Cinema, tendo nunca abandonado em suas obras, o caráter reflexivo de suas
películas, onde a denuncia e a crítica a realidade, apareciam sempre de forma veladas,
fazendo o que Ferro perfeitamente denominava de “Contra Analise da sociedade”,
revelando muito mais do que propriamente esperava com o enredo e o roteiro
escrito para aqueles filmes.
Sua primeira e grande aparição polêmica aconteceu
com a filmagem de talvez a maior obra cinematográfica de todos os tempos,
Cidadão Kane, do ano de 1941, quando este ainda era um jovem cineasta, ator, e
roteirista de 26 anos. Audacioso, Welles ocupou todos estes cargos, e magnânimo
como era, desempenhou com total genialidade cada uma destas funções, dirigindo
e protagonizando a história de um magnata das comunicações baseado na vida do
milionário William Hearst. Mostrando todas as contradições da vida deste
Magnata, Welles acabou então entrando em desagrado frente ao mesmo, que após a
tentar travar a exibição do filme, passaria a perseguir o mesmo, acusando-o de
inúmeras prerrogativas, a principal era a de ser comunista, tendo aproveitado
então e disseminado essa informação, que acabou fechando em muito, as portas do
Cinema para o próprio Welles.
Cidadão Kane, 1941: Com esta película, Welles desafiou a grande mídia e atraiu a etiqueta de possível comunista. |
Não obstante estas acusações e atritos com Hearst,
Welles não tivera mais tranquilidade. Passaria a ser investigado e procurado
diariamente pela policia americana, e seu nome se tornaria o alvo principal da
lista negra criada anos depois pela política macarthista. Durante os anos de
1940 – 1950, o senador Joe McCarthy e toda a sua trupe de espionagem criaram a
chamada “Lista Negra de Hollywood”
onde uma gama de artistas em geral, entre eles, cantores, músicos, cineastas,
pintores, roteiristas e etc., apareciam como suspeitos de serem agentes
comunistas americanos, traidores da pátria a serviço da União soviética.
Estas listas causaram também enorme rebuliço no
meio cinematográfico, quando este imaginário de perseguição a este inimigo
indesejável, causaram inúmeras delações dentre pessoas do mesmo circulo
artístico. Talvez um caso clássico tenha sido o do também grande cineasta Elia
Kazan, que figurando entre estes “inquisidores”,
denunciou uma enormidade de roteiristas e produtores próximos a ele que
aparentemente figuravam entre estes de atitude suspeita. As delações de Elia
Kazan eram levadas muito a sério haja vista que este havia sido filiado ao
Partido Comunista americano, sendo assim, suas fontes e suas acusações
plausíveis de serem levadas em diante, pelo menos para o Comitê de Joe
McCarthy. O próprio Orson Welles, decepcionado com a atitude do colega de
profissão teria dito que “Kazan trocou a alma por uma piscina".
Elia Kazan: Grande cineasta, contudo, X-9. |
Dentre esta enorme de lista de
acusados, apareciam o próprio Welles e também outro grande gênio, talvez o caso
mais conhecido de perseguição, Charles Chaplin, que perseguido também por um
delegado macarthista acabou sendo expulso dos Estados Unidos, tendo retornado a
Inglaterra, só conseguindo retornar aos Estados Unidos no ano de 1972 para
receber um Oscar Honorário. Chaplin diante desta conjuntura de perseguições,
antes de seu exilio forçado, teria dito então que:
“Desde o fim da última guerra mundial, eu tenho sido alvo de mentiras e propagandas por poderosos grupos reacionários que, por sua influência e com a ajuda da imprensa marrom, criaram um ambiente doentio no qual indivíduos de mente liberal possam ser apontados e perseguidos. Nestas condições, acho que é praticamente impossível continuar meu trabalho do ramo do cinema e, portanto, me desfiz de minha residência nos Estados Unidos.”
Em 1948, o destemido Welles lança então outra
grande obra que traria para si grande polêmica: Welles leva as telas do cinema,
a clássica história de William Shakespeare chamada “MacBeth”, fazendo uma
releitura do conto com novos fins modernos. Utilizando-se de seus dotes
teatrais para recriar todo o ambiente dramático desta obra shakespeariana,
Welles, sobretudo leva adiante uma releitura por meio deste conto, do cenário
americano de sua época, retratando todo o ambiente pragmático em que vivia,
onde acusações, perseguições e prisões desenfreadas ocorriam por meio desta
política Macarthista que impunha um medo constante e um inimigo comum a ser
batido.
Nesta releitura, Welles também em sua “contra
analise” se utiliza do palco contado por Shakespeare, que vivera o embrião do
pragmatismo na Inglaterra de Elisabeth, onde os fins justificavam os meios,
para anunciar o que estava acontecendo nos Estados Unidos àquela época.
Na obra de Shakespeare, MacBeth é um soberano que
motivado por sua pragmática esposa Lady Macbeth mata o soberano Rei Duncan,
para em linhas gerais, assumirem o posto de soberania na Escócia. Sua ambição
não tem freios em sua execução, ouvindo conselhos de temidas bruxas, e
utilizando-se dos mais vis expedientes políticos para assumir aquele posto. Ao
escrever aquela obra, Shakespeare, como já dito, sabia o que estava escrevendo,
pois em sua época, ele observará este emergente pragmatismo nas atitudes de
Elisabeth, quando esta cada vez mais ciente de seu papel de soberana inglesa,
não media esforços para instaurar a Igreja anglicana de seu pai, e como também,
as guerras que levava a cabo.
MacBeth: A própria coroa é uma clara alusão a estátua da liberdade. |
Não ter escrúpulos é justamente um dos
fundamentos bases da verdade a ser alcançada, criada por este pragmatismo, atitude
levada com grande eficácia tanto por MacBeth, quanto por McCarthy na vida real. Esta denuncia proferida por Welles de forma
perfeita nesta sátira criada por meio de “MacBeth”
ajuda como dito a nos revelar justamente aspectos que não aparecem diretamente
na obra cinematográfica. Marc Ferro justamente ponderava tais questões, chamando a
isso de conteúdo latente.
Enfim, indo cada vez mais longe e por métodos cada
vez mais subliminares, Welles se utilizava muito bem de sua inteligência frente
a adaptações de grandes obras da Literatura Mundial, de forma que ainda
discutindo esta problemática, produziu então a adaptação da obra “O Processo”, do escritor Franz Kafka do
ano de 1920, o qual justamente procurei iniciar propositadamente esta resenha.
O Processo foi filmado em 1962 e justamente porque
o próprio Welles já estava marcado frente aos conteúdos velados de suas obras,
os países que patrocinaram tal obra foram à França, a Alemanha e a Itália.
Utilizando-se do mesmo argumento kafkiano, Welles recria a vida de Josef K, que
ao acordar, vê-se diante de dois oficiais do estado, sendo acusado de um crime
que não havia cometido, mas que seria preso por isso.
Ademais, em todo o filme,
fica visível o teor latente que Wells sempre deseja: o clima sombrio que
permeia o filme é justamente de acusações, de delações e de um risco eminente de
captura e prisão por algo que se sabe ter cometido. Josef K, um funcionário
público comum como qualquer outro, tenta por meio dos meandros da burocracia
estatal descobrir os motivos de sua aparente culpabilidade. Na verdade não há
arquivos contra ele, não há nada que o incrimine. Seu crime é justamente ser
Josef K. Talvez um comunista. Talvez um judeu. Enfim, ao final do filme, Welles
com toques apocalípticos dar fim as angustias do acusado sob suspeita Josef K,
que é então subitamente apagado por dinamites, sem ter o direito de saber qual
crime teria cometido.
O Processo, 1962: Welles retoma Kafka para satirizar o absurdo das acusações e delações durante o MacCarthismo. |
Este final assombroso não é uma expressão de
exagero, quando nos indagamos quantas pessoas acusadas injustamente por esta
conduta, foram assassinadas e jogadas em valas afastadas, sendo definitivamente
e convenientemente para aqueles, apagados da história. Welles ao escolher este
final, talvez tenha se inspirado num caso polêmico que estarreceu a sociedade
americana da época quando um casal Ethel e Julius Rosenberg foi acusado e preso
por suspeita de serem agentes internacionais comunistas a mando da União
soviética para tentarem em terras americanas, uma intentona comunista. Ambos
acabaram sendo executados sumariamente sem que provas legais e suficientes ao
menos comprovassem essa suspeita. Muito pior, alguns meses depois da execução,
a acusação feita sobre eles de venderem segredos militares americanos para a
União soviética mostrou-se inteiramente infundada. Mas o estrago já havia sido
feito e fazia parte do sistema.
Dentro daquela verdade necessária, eram menos
dois comunistas que podiam preocupar o Estado... Uma Verdadeira Histéria... Eles estão a solta! Fujam para as colinas! O Comunista pode ser você!.. Ou Eu!
Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe