sábado, 28 de abril de 2012

Distrito 9 e Avatar: Duas metáforas sobre a difícil habilidade humana da alteridade


            Será só quando nos colocarmos na pele do “outro” que sentiremos todos os sofrimentos pungidos ao grupo em questão; Não somente as dores, ou qualquer violência de todo tipo – que vai do preconceito físico ao verbal – mas para entendermos a vida de qualquer comunidade coletiva – sociedade, nação, pátria, tribo – devemos nos prender a um conceito antropológico que tem sido sempre muito caro por em prática, desde os primórdios da humanidade até os dias atuais: a noção de alteridade.
            O Termo “Alteridade” que significa justamente a compreensão do alter = outro como chave fundamental para a compreensão do que se está postulando/estudando – a fim de se evitar qualquer tipo de preconceito -  nos remonta desde sempre a incapacidade humana de conceber sentido a vida alheia; a cristalizar seu sistema cultural como o único modo civilizado possível na completude mundial;
            É claro que hoje em dia o conceito de alteridade ainda esbarra em alguns choques culturais bastante aguçados, quando o que está em jogo, são questões que envolvem os direitos humanos. Para compreendermos o germe deste tipo de polêmica, é só remontarmos como têm sido atuais as discussões em torno ao respeito das práticas culturais indígenas em algumas regiões, e até que ponto o Estado deve manifestar a sua ação nestas querelas.
            Entretanto, a ausência da alteridade sempre estará mais presente quando o que está em cheque são os interesses econômicos patrocinados justamente por uma Ideologia segregatícia, preconceituosa, num tipo de visão que se assemelha ao “fardo do homem branco”, aquela ideologia imperialista levada a cabo pelas potencias imperialistas do século XIX, de essência puramente econômica, mas falseada numa Ideologia que é por si só altamente racista.


O Fardo do Homem Branco: Da "Moral civilizatoria" que por si só era preconceituosa, sobressaia os verdadeiros intentos: exploração economica.

            Nesse sentido é que o Cinema recente tem até procurado refletir estas questões, talvez porque estejamos vivendo um momento conturbado mundialmente, sobretudo graças a pouca aceitação das múltiplas formas de manifestação cultural, religiosa, étnica, manifestadas nos inúmeros conflitos mundiais a que temos tido a oportunidade de observar.
            A grande sacada por detrás destas películas é justamente apresentar a inserção na alteridade através de sujeitos que praticamente são “corrompidos” dentro do sistema. Através da escolha de personagens que são retratados desde sempre agindo em favor da Ideologia em questão, partícipes ativos do processo, as películas transmitem um sentido de “renascimento” dos mesmos, uma imersão cultural, uma viagem nos meandros da assimilação cultural, e, por conseguinte, do entendimento do outro, vivida na pele por estes personagens.
         Este é o ponto central: uma alteridade sentida cruamente na pele. Em alguns casos, o processo que ocasiona a alteridade se apresenta ativada por uma virtude romântica, que como veremos, vai do amor platônico – um amor que se não for feito dentro da assimilação será impossível – emergido dentro do “campo antropológico”, ou noutros casos, e nesse num sentido mais moral, mais cru, bastante aterrador, diante de praticamente uma “lição” oferecida pela vida, uma purgação, um castigo penitencial.
            Por conseguinte, duas películas de bastante sucesso recente que se encaixam justamente, cada uma em particular, nestas temáticas são: Avatar, 2009, de James Cameron e o pouco badalado, contudo sensacional, Distrito 9, também do ano de 2009, do diretor Neil Blomkamp.


Avatar e Distrito 9: A Mesma discussão em tons diferentes.

            Grande sucesso de bilheteria e de critica do ano, o blockbuster 3D de James Cameron tem como principal qualidade, a capacidade de aliar todas as necessidades impostas pelo mercado hollywoodiano – o romance, a aventura, o drama, os grandes efeitos visuais agora com o novo chamariz 3D – com uma discussão que se é subliminar, velada, deve ter sido percebida ao menos por algumas mentes nas salas de Cinema.
            Em tempos de imperialismo norte-americano, Cameron ousou, ainda que se utilizando do paradigma cinematográfico romântico, discutir até que ponto a compreensão que temos do outro não está inteiramente falseada por interesses econômicos. Em Avatar, somos levados a um “faroeste” moderno, numa clara alusão a expansão território adentro tomada pelos colonos americanos frente as populações indígenas nativas durante o século XIX: Em um quadro moderno, somos levados a vida dos povos Na ‘vi, através da chegada de uma expedição cientifica – e de exploração e conquista – ao território de Pandora.
            Os Povos Na ‘vi possuem uma vida inteiramente ligada a natureza, sendo aliás, parte fundamental destas. Todas as ramificações de arvores, todos os mares, todos os seres vivos, fazem parte de uma cadeia única, sentida por todos os habitantes daquele “mundo”. Em dias de desrespeito ecológico, de ruptura constante das cadeias alimentares – e sobretudo do desequilíbrio que causa a extinção de varias espécies – Avatar também vai fundo na ferida do desrespeito a natureza, incidindo sobre como todos nós somos parte de uma mesma esfera, ou seja, somos nós mesmos os agentes e as vítimas de nossos atos nessa nossa Biosfera.
            Esse respeito e sentido de pertencimento, que é ancestral e passado de geração em geração, assumido pelos Na´vi é o eixo central do filme, aspecto que perpassa o sentido econômico e o clímax da película, haja vista que os novos “exploradores” não conseguem admitir tal conduta, tanto pelo aspecto cultural, e sobretudo pelo choque que isto representa frente ao seu intento econômico.
            Nesse futuro “distante” em que é retratado Avatar – o ano é de 2154 – uma empresa bioquímica de sigla RDA, procura através de viagens intergalácticas, encontrar minerais do tipo Unobtainium”, um mineral que em seu significado denota justamente algo impossível de ser encontrado na própria Terra.
            Este minério tão especial que só pode ser encontrado naquela caixinha de Pandora com suas surpresas, é metaforicamente a própria alteridade nas mãos, ou melhor nos pés, paradoxalmente, de sua personagem principal: o ex- fuzileiro paraplégico Jack Sully.

Jack Sully: Humano e em forma Avatar.

            Sully é o agente “explorador” da companhia. Seu corpo ganha um novo molde naquele mundo: um Avatar, uma forma artificial de vida adaptada àquela realidade. Gradualmente Sully aprende os conceitos ancestrais, de respeito a natureza e ao próximo que rege aquela sociedade, se encontrando cada vez mais fascinado e tentado a permanecer naquela nova realidade. Um novo aspecto o prende por definitivo: o Amor que nutre por Neytiri, uma jovem e corajosa princesa. Em todos os caminhos românticos de inserção cultural – e amorosa – vivenciada por Sully na película, perpassam o caminho da mentira, pois este, apresenta uma historia falseada para adentrar naquela nova trajetória, sendo seu passado, os motivos e os meios para estar ali, por ele omitidos frente aos povos Na´vi. 

A Inserção ativada pelo principio do amor


            Todo este quadro de inserção e de amor nativista entre o explorador que cada vez mais se deixa corromper dentro do sistema e uma bela moça que o faz “renascer” por completo, dá a deixa para o clímax da película, que é justamente o choque de interesses: Sully é descoberto, ao mesmo passo, que a empresa começa o processo de devastação, ou seja, de destruição do ecossistema que mantem a vida do reino de Pandora.
            Sully se torna o anti-herói da película. Sua transformação parcial encontra a concretude ao fim da película, quando o seu amor a jovem Neytiri - os nomes avatares curiosamente remontam a mesma linguística dos povos indígenas de outrora - é concretizado e por vias cientificas, ao que parece, este consegue se manter dentro do sistema Avatar. Sully renasce no reino de Pandora, em um novo subterfugio encontrado frente a vida desgastante e desarmoniosa do mundo terrestre: de uma paraplegia causada por suas atividades militares, sobressaem uma vida de altos voos nos belos cavalos de Pandora, de saltos em grandes arvores. 

Em Pandora, cada arvore, cada flor é a extensão viva da vida de cada um.


            A Película assim, consegue ensejar interesses discussões, sem precisar abandonar é claro as exigências românticas de um mercado consumidor. O Outro, o respeito a natureza como parte constituinte e fundamental de nossas vidas, o falseamento de ideologias, e a crueza da vida moderna, são temáticas subliminares bastante interessantes que perpassam este sucesso de bilheteria em questão. Apesar de extremamente romântico, aspecto que não é nenhum demérito, o filme consegue assim aprofundar algumas reflexões, tomando parte ativamente em algumas feridas ainda bastante modernas.
            Contudo, nem toda película procura abordar estas questões, optando por um final acalentador, romântico, positivo. Esta vontade de acalmar o público, de apresentar um final feliz, acaba sendo deixada de lado, em preferencia a tomada por um lado frio, cru, talvez mais realista.
            A Película Distrito 9 se apresenta desta maneira: numa montagem sensacional que mescla a ficção com o documentário, este filme que não é tão conhecido, apesar dos inúmeros prêmios ganhos, retrata passo a passo, a história do cinismo que envolve a exploração da desgraça alheia, noutro tom mais objetivo, o esvaziamento que perpassa até as chamadas grandes corporações humanísticas modernas, hoje muito mais envolvidas em questões econômicas do que ao que deveria atentar em seus princípios fundadores.
            Também lançado em 2009, esta película acabou causando assombro na crítica, além das críticas feitas, por conta do cenário da rodagem do filme: a África do Sul. Por se tratar de um filme “negativo” acabou sofrendo muitas críticas, haja vista que a sua propaganda poderia prejudicar os caminhos da Copa do Mundo que seria realizada no ano de 2010 naquele país. Contudo, a realidade retratada no filme é por demais sul-africanas. É a sua inspiração. O Termo Distrito 9 é uma referencia direta ao Distrito Six - percebam que o Nove é um Seis de cabeça para baixo -, uma “comunidade” criada durante os anos 1970 na Africa do Sul, para abrigar a população negra, removida a força das áreas de suposta ocupação branca. A Película em questão é um filme então sobre o apartheid, a segregação racial, étnica, de toda ordem: inspirado diretamente sobre a África do Sul, o filme procura transgredir espaços, procurando então discutir este conceito de forma mundial, e como também, outras questões diretamente envolvidas no processo, como os interesses econômicos e militares de grandes companhias, e etc.

Placa racista dos tempos do Distrito Six


            É nesse tom que o filme se segue: somos levados ao cinismo documental proposto pelo “bom marido e pai de família” Wikus Van der Mewe, que trabalhando para a MNU (Multinacional United) – numa clara referencia ideológica ao que deveria se constituir a ONU, e seu controle pelos EUA – acaba sendo indicado por seu sogro, para executar as remoções dos habitantes das periferias de Johanesburgo.
            Uma das grandes qualidades da película está justamente na escolha do “outro” em questão: são aliens. Esta qualidade imensa reside no fato de que, desde cedo, o filme consegue suscitar a repulsa, o estranhamento, o nojo mesmo, no próprio público, num artificio de interação que tem o proposito de demonstrar a forma como o pré – conceito, pode ser danosa nas relações humanas. Esta é a grande capacidade do filme: fazer o próprio público inserido na querela, e em certo ponto, sentir-se mal por conta de alguma repulsa sentida aos aliens. 

Nas palavras do próprio Alien: " Nós só queremos retornar para casa"

            Mas é esta repulsa tem sentido, e de modo algum objetiva demonstrar que a segregação deve ser vista como comum se não entendemos o outro lado. Muito pelo contrário, a construção do enredo da película nos leva a entender gradualmente que a vida daquelas pessoas é muito parecida com a nossa, que se alimentam da mesma maneira – o que mudam são os alimentos – que manifestam os mesmos sentimentos, e que em ultimo caso, podem ser diferentes de nós em algum aspecto, mas que somos todos iguais em essência.
            Desta maneira, a película conta a história de uma grande nave alienígena que no ano de 1982, acaba pairando no ar de Johanesburgo; as grandes companhias humanitárias falseando um interesse humanista, acabam resgatando os tripulantes, colocando-os em uma região periférica, a base da miséria, e sobre forte segregação “racial”. É neste meio que o executivo der Mewe se insere: o cinismo deste personagem chega a ser repulsivo.
            Ele documenta o decorrer de todo o processo. E esse é um dos pontos mais interessantes: a transformação de seu discurso nojento, discriminatório, diante do que seria posteriormente a sua realidade.  Van der Mewe trabalha a serviço da MNU deslocando os “outros” de forma arbitraria, matando muitos, levando outros para regiões de pesquisa, para áreas de dissecação, e em maior caso, para áreas da própria MNU que é descrita como uma suposta empresa humanista, mas que em ultimo caso, é a segunda maior empresa do mundo em produção de armamentos – seria os Estados Unidos? -.  Lá, os aliens são estudados porque seus armamentos também estão inteiramente ligados ao seu corpo, a sua natureza, sendo o “fluido” corporal daqueles que fazem funcionar seus armamentos potentes. É a isto que interessa a MNU.
            Enfim, neste tom ficcional, documental de representação do processo de deslocamento violento destes, o filme retrata com crueza a violência perpetrada pelos militares de der Mewe: numa cena horripilante, der Mewe atira fogo em uma casa alienígena, que servia de casulo para inúmeros ovos. Alegre e num tom assustador, o próprio sorri frente aos “pipocos” daqueles casulos estourados pelo fogo. Tudo normal, afinal são animais.

O Ambiente enclausulado onde vivem os "camarões"


            A Grande sacada do filme reside justamente na “redenção”, ou melhor, no sofrimento do próprio cínico Van der Mewe: numa de suas inspeções, este acaba sendo “infeccionado” se transformando lentamente numa daquelas figuras segregadas em sociedade. A Inserção, o principio de alteridade aqui é doloroso, forçado, e não por menos, o final teria de corresponder a esta questão.
            “Transformado” em um daqueles, der Mewe peregrina em busca de um antidoto que poderia solucionar a sua questão. Perseguido pela própria empresa que trabalhava, afinal ele era um humano alien, o primeiro deste naipe, abandonara forçosamente a sua família, e vivendo como aqueles, passaria a lentamente compreender a dimensão sofrida dos chamados “camarões”, termo usado por ele mesmo em todo filme para se referir aos aliens. Acaba percebendo, através da amizade com um alien de nome “Christopher Johnson”, que os aliens possuem nome. Essa menção aos nomes também deve causar arrepio no público, numa tomada de atitude que demonstra como estamos diante de pessoas como nós, com o mesmo nome. É a discriminação quem começa a enxergar coisas.

Der Mewe: A Inserção pela DOR.


            Enfim, o final do filme é uma mescla de poesia com visão apocalíptica. Final belíssimo e ao mesmo tempo aterrador. Difícil é não derramar lágrimas e ficar contrariado sem saber se está triste ou feliz com a situação de der Mewe . O Filme é desconfortante, não possuía linha única, quer mexer, e isso consegue com eficácia. Suas críticas profundas, vão desde esta difícil incapacidade de entender a dimensão múltipla do outro, como mais uma vez os aspectos falsos de uma Ideologia, de movimentos humanitários que em ultimo caso possuem um intento militar, econômico em primeiro lugar. Percorrendo os caminhos de Johanesburgo, der Mewe sente na pele o que é segregado, o que é ser atirado as latas, o que é ser procurado como um cachorro na periferia.
            Películas como Avatar e Distrito 9, ainda que em tons bastante diferentes, podem nos ajudar assim, a pensar como a alteridade é um conceito ainda raro nas ações da humanidade em um âmbito bem mais complexo do que imaginamos. Do romantismo a dor da vivencia crua, a imagem que fica é que o ser humano parece odiar a si mesmo, ao não compreender o outro como parte de sua própria dimensão. Estranhos somos nós mesmos.

Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.
           

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Mr.Hyde que reside em nós: O Cinema para debater o Homem e a Ciência


         A Ciência nem sempre impulsionou nos homens, a certeza do progresso e consequentemente da felicidade obtida por meio de seus derivados. Ainda que esta produza inúmeras benesses na vida de todos nós – e isso é inegável – a Ciência em alguns casos acabou trazendo algumas consequências nefastas para a humanidade. Talvez a escrita do paragrafo acima esteja incorreta. Joguei a culpa em quem não devia. Não foi a ciência quem trouxe efeitos nocivos, mas sim, o modo como o homem tem se apropriado de suas próprias descobertas. Enfim, seu mau uso.
         Os anos 1930 – 1940 marcaram significativamente os tempos nefastos da pesquisa cientifica. No meio da Segunda Guerra, em 1941, em plena competividade militar, os Estados Unidos desenvolve o Projeto Manhattan, unindo seus principais cientistas, paralisando suas pesquisas, no sentido da construção da horrenda bomba atômica. A própria Segunda Guerra foi palco com certeza da maior indústria da morte conhecida. 
         O Nazismo erigiu em solo alemão, austríaco, polonês, inúmeros campos de concentração, dotados de uma grande eficácia mortífera, obtida através de burocráticos estudos desenvolvidos nesse sentido. O Gás letal Zicklon B surge para assassinar mais rápido, e em maior quantidade, aos judeus nas casas de banho, nestes campos de concentração. Nessa linha de montagem da morte, os corpos são pilhados e queimados em verdadeiras piras, que funcionam a ritmo industrial. No lado mais “glamoroso” do sistema, os cientistas eugenistas lotam os laboratórios alemães na promoção de pesquisas que ajudem a melhorar a raça, a obter o suprassumo do que seria o homem alemão. As cobaias são claro  as crianças – gêmeas como queria Josef Mengele -, os velhos, os deficientes, enfim, todos os que não eram considerados arianos, e que dai em diante, podiam ser transformados da condição de humanos, para simples objetos de pesquisa.
       Esses dois exemplos obviamente que são exemplificações de casos exagerados da relação nefasta que se pode produzir entre o homem e a ciência. Contudo, em uma escala mais reduzida, esta questão também pode ser retratada. Lá atrás, no final do século XIX, a literatura já apresentava seus anseios sobre os rumos que a ciência poderia obter em mãos erradas.
         Paradigmática é a obra “O Estranho caso de Dr.Jekyll e Mr.Hyde” do escritor britânico Robert Louis Stevenson, lançada em 1886. Na obra, somos levados ao universo glamoroso de homens da fina flor inglesa, na figura do aclamado e respeitadíssimo médico, o Dr. Jekyll, um verdadeiro sir, bastante conhecido por seus atos de filantropia. O Outro extremo da obra nos leva a aterradora revelação do lado mais obscuro do mesmo, simbolizado na emergência do pavoroso e frio Mr.Hyde, obtido através de uma experiência realizada pelo mesmo. Cada vez mais dominado por essa descoberta, Jekyll é lentamente dominado por Hyde, que acaba assumindo a esfera total de sua vida.

A Ciência pondo em vista o lado mais sombrio: Mr.Hyde.


         Jekyll sucumbe com sua própria descoberta. Stevenson além de obviamente querer demonstrar o lado mais sombrio humano – escondido até nas almas tidas como puras – procurou fazer sua crítica a esta inconstante natureza humana e ao possível efeito pavoroso que pode manifestar frente à ciência.
         Às vezes é muito poder, muita inteligência, para um animal racional com muita capacidade de fazer o mal, e em alguns casos, queiramos crer que não sejam poucos, de fazer o bem.
       Neste sentido, o Cinema tem refletido também, numa esfera mais introspectiva, a relação homem – ciência. Não quero tratar nesta postagem sobre filmes futuristas, megalomaníacos, com grandes civilizações, transportes voadores, robôs e etc. Não, a ciência desta postagem está muito mais ligada a uma micro – dimensão, uma esfera mais pessoal do individuo.
         Alguns filmes tem procurado refletir em especial sobre a possibilidade que a ciência oferece de obter “uma nova vida”. Grande parte destas películas parte de um inicio aterrador, da apresentação de um presente triste e da possibilidade de ao final, com o auxilio da ciência, chegar a um caminho feliz. Mas isto está apenas na teoria, porque tais obras sempre trazem uma ideia apocalíptica, trágica.
         Obter uma nova vida através da ciência muitas vezes no Cinema é obter um “novo rosto”, símbolo desta nova etapa. É nesse sentido que se segue a postagem: a reflexão sobre a humanidade que fazem os filmes sobre cirurgias plásticas, pelo menos, os filmes mais reflexivos do gênero que eu tive contato.

Os Olhos sem Face (1960) de Franjou: um dos precursores da discussão


         Talvez o primeiro grande filme a emergir nesta discussão, e que com certeza serviu de modelo ideológico para os posteriores, foi o filme francês “Olhos sem Rosto” de Georges Franjou, lançado em 1960. Neste filme de terror – ou suspense clássico – fantástico, Franjou nos leva a agonizante situação do Prof.Genessier e de sua filha Christiane. Esta, após uma acidente de carro, acaba sobrevivendo com a face desconfigurada. Acometido pela culpa do acidente, seu pai, o Prof.Genessier desenvolve uma cirurgia para mudança de pele. 
        Determinado a recuperar a beleza e a vida de sua filha – que vive enclausurada dentro de casa e portando uma aterrorizante mascara sem expressão feita de silicone – procura por vitimas em Paris, que apresentam a mesma consistência de pele da sua filha, ou seja, maior probabilidade de êxito na cirurgia. 

Christiane e sua mascara sem expressão


       O Enredo da película é simples, mas o final é surpreendente, e os caminhos atormentados seguidos pelo pobre Professor Genessier – que em alguns momentos da trama temos pena – demonstra a que nível de degradação pode chegar à mente humana quando acometido pela culpa, e nesse sentido, quem porta a ciência, o mal que pode acometer usando tal instrumento.
         Pouco tempo depois, nos mesmos anos 1960, foi lançada a película americana “O Segundo Rosto”.  Trata-se de um filme bastante atormentador. Sufocante. Narra à história de um comum idoso que, insatisfeito com a sua fase final de vida –a inercia, os mesmos lazeres – é convidado por um amigo para “renascer”. Através de uma cirurgia feita em uma empresa médica clandestina, ele renasce com um novo corpo, nova face, enfim, uma cirurgia que o faz renascer por fora, voltando praticamente para maturidade da vida, é claro, com uma nova identidade, uma nova face. 

O Segundo Rosto (1966): Final Reciclativo da especie humana


        Tudo feito é claro sem ninguém saber. Como? A própria empresa trata de simular a sua morte, de forma que, sua esposa acaba então sabendo de seu “óbito”. Um corpo comprado acaba assumindo seu lugar na hora da morte. Revitalizado, com uma nova face, e sem ninguém a prestar contas, o “renascido” parte novamente para curtir o mundo, mas acaba não se adaptando. É tudo muito artificial, pois possui um corpo novo, mas a mente é a mesma, continua ligado ao estágio mental indicador de sua idade. O Experimento então não dá certo. O Final desta película também é assustadora, apresentando um final bastante que eu definiria aterrador por se apresentar "reciclativo" sobre a especie humana.

A Face de um Outro: Duas histórias com uma mesma proposta.


         No mesmo ano de 1966, o cinema japonês se aventurou na perspectiva. O Filme “A Face de um Outro” aborda a questão a partir de duas historietas: na primeira, um homem com o rosto deformado acaba sendo rejeitado por sua esposa, encontrando a solução para seus problemas numa cirurgia. O Resultado é nefasto, porque seu caráter acaba sendo alterado pela cirurgia... Noutra historia, uma jovem desconfigurada por conta daquela bomba atômica, a de Nagasaki, sofre os traumas de sua triste situação. Filme bastante reflexivo e que vale muito ser assistido.

A Pele que Habito: a retomada de uma antiga discussão.


         Recentemente, uma outra película ganhou bastante destaque. Trata-se do filme “A Pele que Habito” (2011) do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Seguindo a mesma tendência de Franjou, com seu Olhos sem Rosto, Almodóvar conta a história de um medico interpretado por Antônio Bandeiras que após perder a esposa em um acidente de carro, acaba bitolado em suas pesquisas para desenvolver um tipo de pele especial que poderia ter salvado sua esposa. A Trama se segue, e os delírios do medico o fazem transgredir qualquer tipo de ética possível. Mais uma vez o final apresentado é aterrador.
         Enfim, a partir destes filmes aparentemente diferentes por conta de suas nacionalidades – um americano, um francês, um espanhol e um japonês – podemos ver como a temática em questão tem sido tão abordada pelo Cinema, principalmente para retratar a incapacidade humana de respeitar seus limites, e noutro caso, a vazão do seu lado sombrio acelerado dentro de suas ações na ciência. Em todos os casos, se segue a mesma metáfora: uma mascara, uma pele, uma renovação, mas o que está em jogo, é a chaga interna, irrecuperável, que não recuperada, alimenta mais ainda o descontrole humano em concertar o irremediável.
         O Lado sombrio acaba vencendo tudo. Domina o Homem e faz uso da ciência.

Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.
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