Procurar decifrar a película “O Sétimo Selo” significa
perscrutar as profundezas da alma bergmaniana, e adentrar mais do que nunca,
nas inquietações da alma humana, no decorrer de toda a nossa história. Trata-se
de um filme atemporal, no sentido artístico, estético e acima de tudo
ideológico. Ao contrário do que pareça não se trata de um filme sobre pessoas,
questões e medos existentes durante a Idade Média, mas sim uma reflexão
profunda e puramente existencial sobre a natureza humana que é aquém e inata a
qualquer período histórico especifica.
Desta forma, “o filme é na verdade uma alegoria que tem a
Idade Média como pano de fundo, ou se quiser, como principal paisagem.[1]”, mas
não o principal eixo de seu questionamento.
Com o “Sétimo Selo”, Bergman procurou acima de tudo reproduzir ou se
questionar sobre a natureza do homem, seja ele, antigo, medieval ou moderno, na
medida em que se encontra sempre diante dos mesmos temores, das mesmas
angustias: O Medo diante do desconhecido, diante do anuncio de um amanha
sombrio e sem respostas, através de uma alegoria clássica entre o jogo do homem frente a Morte.
Não obstante, para
efetuar metaforicamente tais reflexões, Bergman utiliza com eficiente destreza
um desnudamento da alma humana a partir de uma “paisagem medieval” que remonta ao ano de Nosso Senhor (1348),
quando a Peste Negra assolara a Europa, e trazia assim à tona além do medo,
inúmeros questionamentos sobre a natureza divina, e, sobretudo sobre a fé
humana. Este espaço temporal é apenas um meio pela qual Bergman procurou
discutir, contudo, o necessário a salutar é que para ele, tudo aquilo é nada
mais nada menos do que a representação do nosso presente.
Desta maneira, o
proprio Bergman afirmava que “O Sétimo Selo” trata-se de um “poema moderno, sentado com material
medieval muito livremente manipulado. O Cavaleiro do filme retorna da cruzada
como o soldado de nosso tempo retorna da guerra.” [2]
Assim, o que menos importa em Bergman,
é a delimitação temporal. Tanto vale que estejamos em 1348, nos anos 1980, ou em 2012, pois
para Bergman o que vale é a natureza humana, a parte suas inquietações,
sofrimentos, que são os mesmos, contudo com uma face diferente, mas de mesma
essência, no decorrer de toda a história da humanidade.
O Temor diante da morte, da existência
de Deus, e principalmente de um amanhã marcado por uma hecatombe mundial,
sempre vai emergir quando o Ser humano encontra-se em particular diante de um
período de inquietação forte, seja durante o ano da Peste Negra, seja no pós - segunda
guerra, onde durante o filme foi rodado, cujos ventos anunciavam uma Guerra
Fria, que traria a tona o medo de uma explosão mundial, que já era possível
crer, graças às recentes inflamadas e assustadoras bombas mundiais de Hiroshima
e Nagasaki. Assim, a Peste Negra de
ontem pode ser a difusão avassaladora da AIDS durante os anos 80, as cruzadas
continuam a ser fruto da irracionalidade bélica humana, e como fruto disso
tudo, o resultado será sempre um retorno a reflexão sobre si mesmo: O que é o homem,
quais são os seus medos, como lidar com eles, e por fim, como nos consolaremos.
Diante de tudo isto, Bergman conseguiu
graças a sua genialidade, através desta marcante metáfora “medieval-moderna”
abarcar todos os questionamentos de ontem, hoje, e com certeza de amanhã,
utilizando-se um fundo histórico verídico eficientemente utilizado, e,
sobretudo tornando a película nada menos que uma representação artística destes
temores.
Valendo-se de seus dotes teatrais, haja
vista que Bergman foi acima de tudo um diretor aclamado de teatro, utilizou-se
de muito da estética dramática dos palcos para reconstruir os temores de “O
Sétimo Selo”. Desta maneira, Bergman conta com uma trupe de atores, que o
acompanha desde as suas peças de teatro até seus mais aclamados filmes.
Tudo em “O Sétimo Selo” é filosófica e
historicamente pensado de forma a exprimir perfeitamente e com alto teor
artístico herdado do Teatro, para representar as emoções humanas. Para assim
ser, Bergman acaba recorrendo aos:
“...
contrastes de claro/escuro, o cuidado posto no vestuário, a caracterização
central da Morte com seu rosto de mascara, os gestos automáticos e visivelmente
programados dos flagelados na procissão, a opção por quadros autônomos, como se
os atores estivessem em um tablado. (...) São ainda as raízes teatrais que
esclarecem os sentidos dos importantes closes das fisionomias dos atores...” [3]
Daí
em diante, nos confrontamos com o duelo entre a fé abalada do cavaleiro
Antonius Block em sua busca por respostas, contra o ceticismo do já convalido
pelas desgraças humanas escudeiro Jons. Deparamo-nos com uma personificação da
Morte, que se torna impessoal, enigmática, sem respostas, que se torna por si
só seu oficio, não atuando por Deus, nem pelo Diabo. Em suma, são os inúmeros questionamentos
postos a prova por Bergman e seria quase que impossível destrinchá-lo neste
breve comentário.
Se a relação da História para com o Cinema é
importante, Bergman faz desse uso bastante proveitoso, e perfeitamente
histórico e artístico. Toda a película é fundamentalmente histórica, e,
sobretudo artisticamente falando.
Uma cena em especial me chama a atenção, pois
é ali onde percebemos a clara intenção, já afirmada, de Bergman para com o bom
uso da arte: Durante um dos quadros do filme, o lenhador Skat utiliza-se de
seus dotes artísticos de ator, para enganar o ferreiro Plot, e assim fugir de
seu duelo. Considerando-se experto, o covarde ator sobe em uma arvore, até que
percebe que a Morte está lhe derrubando a sua “arvore da vida”. Assim,
percebe-se que a própria morte considera indigno aquele que utiliza a arte para
coisas deploráveis, como fizera o ator. A morte respeita a arte e não quer
assim que façam um deplorável uso dela. A arte é pura, por si so deve existir
como manifestação da subjetividade e pureza humana. A própria morte é uma arte
e não quer ser desrespeitada como tal. Fica clara a mensagem de Bergman através
desta passagem como um dever diante da pureza da arte.
Sob o aspecto histórico, O Setimo Selo na
verdade nada mais é do que uma eterna “Dança Macabra” desde a sofrida procissão
dos flagelantes até a chegada da morte na casa de Block, levando-os “Todos eles, o ferreiro e Lisa, o cavaleiro,
Raval, Jons e Skat. E a severa morte os convoca para dançar. Quer que todos
dêem as mãos para formarem uma longa fila. A morte vai à frente com a foice e a
ampulheta, mas Skat vai atrás com a sua lira. Eles vão dançando, se
distanciando do sol, em uma dança solene. Dançam rumo à escuridão, e a chuva
cai nos seus rostos lavando as lagrimas salgadas de suas faces” [4].
Essa eterna dança é a chamada “Le
Danse Macabre” que marcou a pintura medieval, iniciada a partir do século
XIV, quando através das artes das pinturas das paredes das Igrejas, dentre outras formas de manifestação artística, procurava
se demonstrar que a morte vem e não poupa ninguém, não há classes sociais, são
todos iguais, chamados a dançar.
Esta
caracterização da chamada Dança Macabra é crucial e abarca praticamente todo o
eixo da obra, sendo de um caráter artístico perfeito durante toda a sua
execução. A Película nada mais é do que uma fuga obsessiva desta macabra e
indesejada dança que chamava para o baile a quase todos. Como sinal de negação
a Morte, e a fim de encerrar este comentário, propositalmente deixo para o
final algumas palavras sobre as personagens Jof, Mia e Mikael, que para Bergman
tem todo um sentido religioso, messiânico até.
Estes são os únicos que conseguem
se salvar, inicialmente porque são os únicos seres puros de coração de toda a
história, são artistas que fazem bom uso de sua arte, que para Bergman
representam um sentido muito importante: “O
Conceito de Santidade Humana. Se você desfizer as camadas de varias teologias,
o sagrado sempre permanece.” É por isso que depois de tocada a sétima
trombeta do apocalipse, somente sobrevivem como salvação e símbolo de um
reinicio baseado na pureza, a trindade messiânica, um casal puro, Jof, Mia e
Mikael, assim nada está perdido ainda, enquanto houver esperança, pureza, e
unção entre o amor e o bom uso da arte pela arte.
Ass: Rafael Costa Prata
Graduando na Universidade Federal de Sergipe
Ass: Rafael Costa Prata
Graduando na Universidade Federal de Sergipe
[1]
MONGELLI, Lênia Márcia. Ingmar Bergman e o Jogo
da Morte. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.), A Idade
Média no Cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, p.83-127, p.86.
[2]
Idem, p.84-85.
[3]
MONGELLI, Lênia Márcia. Ingmar Bergman e o Jogo
da Morte. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.), A Idade
Média no Cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, p.83-127, p.89.
[4]
Fala Final do personagem Jof durante a execução da película.