O documentário “Cabra marcado para morrer” é de autoria do cineasta Eduardo Coutinho e posiciona-se como uma das obras cinematográficas mais importantes sobre as reminiscências e ações da ditadura militar no país. Paulista, nascido em 1933, Coutinho tem uma larga formação em cinema e também em jornalismo, tendo estudado na França o curso de direção e montagem no IDHEC, o Instituto de altos estudos cinematográficos, onde ele realizou seus primeiros documentários. Quando voltou para o Brasil, Coutinho bastante influenciado pela escola francesa do “Cinema Verdade” integra-se na CPC da Une que eram centros populares de cultura com objetivo de levar a cultura às massas e despertar a consciência política do povo utilizando-se da arte e da informação para esses fins. Assim, desenvolve vários curtas e medias metragens como “O pistoleiro de Serra Talhada” de 1976 e “Portinari, o menino de Brodósqui” de 1980, todavia sua obra de indiscutível destaque e que o torna reconhecido internacionalmente é “Cabra Marcado para morrer” que lhe trouxe inclusive muitos prêmios como o FIPRESCI no Festival de Berlim do ano de 1984, entre outros 12 prêmios em festivais internacionais, reconhecendo o seu exaustivo trabalho para a concretização desta obra que após interrupções e perseguições conseguiu concluir ainda que contraditoriamente a linha do filme tenha seguido outra tendência.
Em " Cabra Marcado para morrer", percebemos o auge de um Eduardo Coutinho que não se preocupa com imagens positivas, adotando um olhar mais cru sobre a realidade e que opta por uma visão popular da história. A estética assim nesta obra não importa, o que vale realmente é retratar o popular, o povo comum, a memória do passado oprimido. Não há preocupação em fazer locações em ambientes que causem boa impressão e sim em locais corriqueiros, populares, como a porta de casa de uma velha senhora, uma rua movimentada popular, um ponto de encontro de idosos em uma velha casa e etc. Dessa forma é o povo quem fala, é o escarro proveniente da expectoração do velho e forte João Virgínio da Silva que é filmado e demonstrado na obra mostrando a diminuta preocupação do cineasta com a estética e sim a sua preocupação com o caráter popular e realista para seu projeto. Quanto à composição da obra enxergamos uma ruptura cronológica, onde também não há um roteiro prévio para a execução do filme e o cineasta acaba por revolucionar o cinema com uma nova conduta onde o diretor explica e toma parte nos fatos, ele participa da história mostrando o que acontece e o que pode de ser feito. Ele também é um sujeito desta história, pois desde o momento inicial do filme, Coutinho esta lado a lado dos participantes da saga retratada no filme inclusive tornando-se um leve amigo destas pessoas e alicerçando assim o seu compromisso para com elas.
Em relação ao enredo da obra, o filme teve um desenlace que mudou os rumos do que viria a ser esta obra. Inicialmente locado em 1964, seria um filme sobre o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira e a saga de sua família utilizando-se de pessoas comuns para serem atores desta história. Porém com o golpe de 1964, o filme foi interrompido porque tanto o cineasta como os personagens desta história passaram a ser perseguidos com a evasiva de serem comunistas paralisando a filmagem por 20 anos, voltando-se apenas em 1984 a retomada da filmagem, todavia com um novo viés. Agora o filme passou a ser um documentário onde o diretor busca os personagens da época e procura entender o que se passou com eles, como vivem e suas opiniões sobre tudo, e em especial ele quer saber o que se passou com a viúva Elisabeth Teixeira, foco deste segundo momento do filme, e assim recriar sua identidade perdida naqueles tempos já que até o momento em que Coutinho a procurou e a encontrou ela vivia com outro nome, deixando assim de lado um passado de lutas que vivia no seu nome.
Assim, por meio de várias entrevistas, o cineasta e seu companheiro vão como andarilhos por todas as localidades onde os fatos se apresentaram, entrevistam personagens vivas daquele tempo e com isso pretende acima de tudo não deixar que aquele passado pereça caindo na vala do esquecimento, que o oprimido não deixe de ser personagem da história.Dessa forma mergulhado na sua estética do “Cinema Verdade”, Coutinho se insere na sua própria obra, foge de estereótipos e a realiza de acordo com o que os fatos lhe aparecem, construindo uma obra que revela uma emoção muito forte tanto no teor das entrevistas, acontecimentos, como no decorrer dos fatos que a história traz como a tentativa de unir novamente Elisabeth a seus filhos que foram dissipados durante seu período de exílio. Carregado de emoção, o documentário não visa apenas relatar os fatos do ponto de vista meramente informativo e sim dar uma característica mais real, entender os sentimentos de cada personagem, mostrar a face humana de quem lutou, na tentativa de não se tornar um filme basicamente factual.
Enfim, muito se tem a falar de uma obra de dimensão tão grande e representativa e que em 120 minutos de película existem ocultas muitas lutas para a sua realização, para a sua filmagem e que se difere dos outros documentários por este colocar o povo como personagem e voz de sua própria história. O próprio cineasta e sua equipe acabam por metaforizar o sentimento da opressão sofrida e que por isso estão intimamente ligados a historia identificando-se com o povo. Coutinho mostra-se um homem ativo da história, que não deixou morrer seu projeto no esquecimento de uma sala, como o narrador mesmo explica sobre a prisão do antigo rolo de filmagem do filme, e que por meio desse passado, explica esse passado, se coloca nesse passado, e ajuda a entender este presente e que pode auxiliar na luta, como podemos resumir muito bem nas palavras da própria Elisabeth Teixeira no desfecho da obra onde ela diz resumidamente que enquanto houver povo envolvido com situações precárias existirá sempre a luta. E é esse um dos principais méritos do filme de acordo com o meu juízo que é restaurar a imagem de luta popular e mostrar que houve luta e que este forte lutador nunca cruzou os braços, mesmo que muitos acreditem que isso ocorreu.
Assim o documentário “Cabra Marcado para morrer” representa o dever de Coutinho diante da história, sua cumplicidade em levar a voz do povo ao conhecimento de todos. Com seu jeito simples e agradável e altamente popular, Coutinho carrega sua câmera para os ambientes onde percorre, e por ambientes onde ninguém havia desejado retratar, tornando-se o instrumento de representação do povo e esta tarefa por sinal ele desenvolve com muito esmero. O Povo, assim, teve direito a fala.
Eduardo Coutinho, um jornalista das Ruas.
Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.
Um dos filmes que mais gostei. Recomendo.
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