"O Grito" - Edward Munch, 1983. |
O Medo, a incerteza e a inquietação frente ao que é
desconhecido e assolador sempre será uma característica intrínseca residente no
âmago mais profundo natureza humana. Caractere
universal que, ao menos neste ponto, aproxima os homens das mais diferentes
sociedades e culturas, localizados em qualquer período histórico, o “Medo” é um
estado emocional que possibilita profundamente, o reencontro do homem moderno
com as suas fragilidades, com seus anseios e fraquezas infantis, muitas vezes
sublimadas pela selvageria da modernidade.
Ao
que parece, em outros estágios da trajetória humana, dá-se a impressão de que
foi possível manifestar-se com mais liberdade este medo. A diferença neste
sentido é que estes manifestavam seus medos, enquanto que o homem moderno,
envolto e escondido na sua ilusória carapuça de segurança, acaba por se
esconder por detrás de inúmeros refúgios, como a crença numa ciência que irá
resolver todos os problemas da saúde, afastando-o cada vez mais a morte, um
medo tão forte nos dias atuais.
A
Idade Média, que tem sido apontada historicamente, e em censo comum, como um período
tenebroso, de trevas, escuridão e ignorância, nesse sentido nos oferece um raio
– x proveitoso sobre os nossos medos; Medos que permanecem e que podem ser
postos em comparação com os temores modernos.
O
Medievalista Georges Duby em sua belíssima obra “Ano 1000, Ano 2000 – Na pista
dos nossos medos” consegue com rara sensibilidade, promover esta questão.
Analisando as estruturas sociais, culturais e mentais da sociedade medieval,
Duby compara os temores de ontem com a tipologia do medo do ano 2000,
demonstrando como estamos mais próximos do que pensamos daquela sociedade de
outrora.
Já no
prefacio da obra, Duby deixa claro que: “As pessoas que viviam há oito ou dez séculos
não eram nem mais menos inquietas do que nós” (DUBY, 1998,p.9). Para ele, o papel da História e do Historiador
seria justamente esta: resgatar do passado, dos escombros da história, aquilo
que aproxima no plano mental, os homens de ontem aos de hoje. Só assim será possível
“afrontar com mais lucidez os perigos de hoje” (Idem).
O
Passado, ao mesmo tempo em que ensina e ajuda a não repetir os mesmos erros e
mazelas, noutro sentido, também reconforta, ao aproximar homens aparentemente
tão diferentes e diversos, no que tange aos seus medos e a forma como lidaram
com tais, a partir, principalmente, do fio condutor da fé, da manifestação com
o divino, em outras palavras, a lide com a religião.
Neste
sentido, uma obra cinematográfica que empreende uma alegoria profunda sobre
estes medos, temores que afligem a humanidade seja qual for à época, é a
película “Navigator – uma odisseia medieval”, do ano de 1988, dirigida por
Vincent Ward.
Em
meio ao furor ocasionado pela infestação da AIDS no decorrer dos anos 1980,
esta película empreende a uma belíssima metáfora sobre os medos humanos e a
procura iminente por respostas confortantes seja qual for à datação em que
estejamos localizados.
Baseada
em um pano de fundo medieval, somos levados a uma pequena comunidade localizada
na Cumbria, Inglaterra, no ano de Nosso Senhor - 1348, quando a Peste Negra
deixa de forma bastante substancial, um grande número de vítimas em solo
europeu, espalhando o caos, o terror e a incerteza frente ao dia de amanhã. Esse
é o clima de Navigator: a constante
manifestação do temor frente à morte e a procura, através da religiosidade, de
manifestações divinas que aplaquem o poder devastador da Peste Negra.
Somos
levados então ao mundo do jovem garotinho Griffin, que passa a sonhar
constantemente com a construção de uma grande Catedral em homenagem a Deus, que
passa a ser vista pelos aldeões, como uma mensagem de salvação, a solução para
interromper a peste que se espalhava naquele momento. Para eles, a peste era
vista como uma cólera divina, um flagelo de Deus enviado graças à insatisfação
daquele frente aos desvios mundanos. Na sociedade medieval, as respostas para
todos os segmentos da vida, perpassavam uma noção teológica. Os Mineiros cantam
efusivamente "Os
homens, acuados, viraram animais...”.
Através
dos sonhos teológicos do pequeno Griffin, os mineiros partem em uma odisseia
temporal em busca de um “fosso na história”, uma viagem no tempo, que acaba levando-os até os anos 1980.
É nesse ponto que o filme inova. É tudo muito simbólico, filosófico,
existencial. Não há clichês, estereótipos depreciativos, preconceitos.
Aproxima-se a noção de vida medieval – e seus medos – aos temores modernos do contemporâneo
anos 1980.
Esta Cena não parece o Quadro "O Grito" de Edward Munch? |
Uma
das cenas que reflete com grande sensibilidade essa aproximação se dá quando um
dos mineiros passa por uma vitrine de lojas de TV, e no noticiário, está sendo
informado sobre o caos e o temor ocasionado pela rápida viralização da AIDS em
todo o mundo. A Peste Negra de ontem é o espelho da AIDS dos anos 1980, ainda
sem resposta, sem os eficientes coquetéis criados posteriormente que ajudariam
a aplacar a velocidade da doença. Naquele momento, não há respostas.
A Morte chegava através da Peste Negra |
No
ano de nosso Senhor, 1348, sem respostas, como Duby explica, se procurou culpar
os judeus e os heréticos pela manifestação da peste negra. Nos anos 1980, foram
os homossexuais, os hippies, os africanos, etc, os apontados constantemente
como culpados. É o medo do “outro” que permanece.
Através
de uma fantasia medieval – moderna, segue-se uma peregrinação em uma Londres oitentista,
onde os mineiros medievais juntam-se a um grupo de pessoas que passam a
auxilia-los em seus intentos, ainda que não consigam compreender profundamente
o que está se passando. Mas é então a fé, o fio condutor de toda a película,
algo que parece ligar aqueles homens do outrora século XIV aos do século XX.
Enfim,
esta desconhecida película faz um trabalho deveras primoroso em todos os seus
aspectos: a fotografia e a trilha sonora, feita sob um verdadeiro trabalho de
pesquisa medieval, são louváveis. O Contraste entre uma Idade Média em “preto e
branco” e os anos 1980 em tons coloridos também é um ponto de destaque no
filme.
O que deve ser apontado como a
principal qualidade do mesmo é esta dita reflexão empreendida entre os medos de
ontem e o de hoje, a aproximação entre aqueles e estes. Mineiros, ferreiros e
moleiros são mais próximos de burocratas, tecnólogos, bartenders do que podemos
imaginar. O que nos aproxima em todos os sentidos é o fato de sermos todos
humanos, carentes de resposta e insatisfeitos com tudo aquilo que nos é inexplicável
e inaceitável.
Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe
Referências Bibliográficas:
DUBY, George. Ano 1000, ano 2000: na pista dos
nossos medos. São Paulo, Unesp, 1998.
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